Por uma igreja horizontal

“Os amigos encontraram a benção de existir além de si mesmos. Eu existo nos amigos, na comunidade esdrúxula da graça”


A sala de estar lilás – A teologia de Friends e a horizontalização da Jocum

Há algum tempo comecei a escrever textos de teologia baseados na série televisiva Friends. Meu propósito era duplo: ter uma desculpa racional para continuar a assistir insaciavelmente a série, e comunicar na língua entendida pelo grupo de consumidores da cultura pop.

Não fui muito longe, cansei-me da desculpa, assumi o meu desavergonhado vício pelo pop e parei de escrever. Mas lamentei a preguiça ao visitar uma livraria americana, quando encontrei toda uma série de livros de filosofia baseada nas séries de TV e nos filmes hollywoodianos mais populares. Aqui tenho comigo o 30 Rock and Philosophy: We Want to go to There, que trata as piadas de Tina Fey com a seriedade de um livro de Michael Foucault. Tem a filosofia do House, do Mad Man, do Harry Potter; então, por que não a teologia de Friends?

Permitam-me retomar a teologia de Friends para explicar, em algumas linhas, um milagre organizacional realizado recentemente na Jocum. Seis amigos vivem em Nova York, moram próximos uns dos outros e algumas vezes compartilham apartamentos. Eles se encontram quase todos os dias, e dividem os detalhes de suas vidas. Não há hierarquia entre eles, que formam uma comunidade, fruto da desfuncionalidade da família pós-moderna. Entre eles, nada além da graça. As confissões são esperadas e os erros também, assim como os acertos. Excluídas as escapadas sexuais, o grupo de amigos acaba sendo uma espécie de epítome da igreja.

Como na igreja de Paulo, cada um tem um dom, uma contribuição. Eles não são iguais e nem acham que devem ser. O valor não é definido pelo que deveriam ser, mas pelo que são. Os amigos encontraram a benção de existir além de si mesmos. Eu existo nos amigos, na comunidade esdrúxula da graça.

O que impede a igreja de ser assim? Sugiro que muitos dos nossos problemas internos na igreja derivam da noção de cristianismo hierarquizado. Interpretamos de maneira vertical a diversidade de dons e ministérios da igreja. A “escada” da espiritualidade deve ser galgada pelos escolhidos. Essa escada torna pastores mais importantes que administradores e professores, profetas mais excelentes que pastores, e apóstolos praticamente semideuses. Quando essa hierarquia espiritual encontra terreno fértil na cultura, então o dano é irreparável. A doença do clericalismo está enraizada na América Latina. A espontaneidade dos dons espirituais é esmagada nessa estrutura hierárquica, junto com o conceito essencial ao cristianismo de valor inerente. Seu valor acaba se condicionando à posição que você ocupa na estrutura.

De uma forma, nem tão Friends e não tão clerical como na maioria das igrejas, na Jocum se vive em comunidade, pela graça e não pelas regras, entende-se o corpo como um organismo e não uma instituição, e missões como um movimento humano e não como um empreendimento capitalista. Conhecendo o braço internacional da missão, entendi porque o Loren é simplesmente o Loren e não o pastor ou o reverendo Loren. O Jimmy é Jimmy – até Dime para uma grande parte não muito letrada.

Em 2002, Deus levou a equipe de liderança a se arrepender pela estrutura que tinham estabelecido. Os títulos e organogramas induziam pessoas ao erro e mantinham a noção de hierarquia vertical. Tentaram mudar por alguns anos, redefinindo títulos e atribuindo menos responsabilidade aos cargos, mas depois de muito se discutir, orar e tentar encontrar uma forma estrutural que representasse o que a missão é ao redor do mundo, a liderança internacional concluiu o óbvio: impossível organizar o inorganizável ou hierarquizar a grama. Grama é grama, corpo é corpo, membros pertencem um ao outro. Não existe um organograma que nos convença da importância de se amputar a perna saudável, e mesmo se um dia a doente for cortada, ainda assim irá doer como se continuasse lá.

Aos 50 anos, a Jocum se horizontalizou. Acabaram-se os cargos na maior organização missionária do mundo. Não existe mais presidente, mas diretor internacional ou nacional, coordenador acima da liderança dos centros locais. Cada país vai encontrar uma forma de diálogo entre os centros missionários e internacionalmente vamos nos reunir num fórum. Amigos, acadêmicos, administradores, visionários, vamos nos servir com nossos dons sem aspirações hierárquicas e posturas clericais. Se alguém for ouvido é porque tem alguma coisa a dizer, e não por carregar uma listra no ombro.

Se vamos continuar existindo com sucesso só o tempo dirá. No momento, acho que nos basta saber que estamos perto do modelo que Deus planejou para sua igreja. Friends, unidos pela graça. Como na sala lilás da Mônica, estaremos no lugar onde ninguém está sozinho.
 

Bráulia Inês Ribeiro
está na Amazônia há 25 anos como missionária, é presidente nacional da JOCUM(Jovens Com Uma Missão) e autora do livro Chamado Radical (Editora Atos)

Comentários