Como pensam evangélicas, que podem definir eleição para presidente

BBC

"Esse ano tem eleição, temos que nos posicionar". Num culto lotado em Brasília, a voz da pastora Raquel Prado ecoa forte. "Você tem o poder de influência. Influencie na sua casa, na sua empresa, por onde você passa. Repita comigo: decisão!".

Todos na plateia repetem. O culto se estende por três horas e uma banda com baterista, guitarrista e cantores jovens acompanha a pregação - ora a música é lenta para dar o tom de reflexão, ora é agitada e os fiéis pulam enquanto cantam músicas de louvor.

Em vários momentos da pregação, a mensagem sobre a necessidade de a igreja se posicionar e se fazer ouvir é reforçada. "A igreja não nasceu para ser enfeite do mundo. Repita comigo: Eu me recuso a ser enfeite!".

A mulher no palco, que claramente conseguiu captar a atenção da plateia, tem 41 anos e é pastora desde os 17 anos. De origem humilde, hoje ela roda o Brasil pregando e defendendo que a igreja se posicione e influencie, inclusive na política e nas eleições.

"Os cristãos estavam mudos, mas agora a igreja se levantou. Estamos colocando a cara e nos posicionando", disse Raquel Prado, em entrevista à BBC News Brasil da sua casa em Taquara, no Rio de Janeiro.

Ela está entre os quase 70% de evangélicos que votaram em Jair Bolsonaro no segundo turno da eleição de 2018. Naquele ano, os evangélicos definiram o resultado, dando 11 milhões de votos a mais a Bolsonaro na disputa com o candidato do PT, Fernando Haddad.

Mas, neste ano, pesquisas de intenção de voto mostram que a presença do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na disputa tem provocado rachas nesse eleitorado - homens evangélicos continuam com Bolsonaro, mas as mulheres estão praticamente divididas entre os dois candidatos, conforme as últimas pesquisas de opinião.

E, segundo especialistas, são as evangélicas, que em sua maioria são de baixa renda, pretas e pardas, que poderão definir quem vai presidir o Brasil a partir de 2023. Afinal, elas são quase 60% dos evangélicos no Brasil.

"Eu não tenho dúvida de que as evangélicas negras vão decidir essas eleições", diz a antropóloga Jacqueline Teixeira, professora da Universidade de São Paulo e autora de livros e artigos sobre crescimento evangélico no Brasil.

Para entender o que busca esse eleitorado, a BBC News Brasil viajou para Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia e conversou com evangélicas que pretendem repetir neste ano o voto em Bolsonaro em 2018 e outras que mudaram de opinião.

Nas entrevistas, algumas questões chamaram a atenção: a conexão com candidatos que falem em "proteção da família", a decepção com a gestão da pandemia, o medo de perda de controle sobre o que filhos aprendem na escola e a demanda por medidas nas áreas de saúde, educação e segurança.


Negros e mulheres são grande maioria entre evangélicos

A face típica do evangélico no Brasil é feminina, negra e jovem: 58% são mulheres, 59% são pretos ou pardos e mais de 60% têm entre 14 e 44 anos. Os dados são de uma pesquisa Datafolha de 2020, a mais ampla feita até agora sobre o perfil do evangélico brasileiro.

Tatiana Gonzaga, de 20 anos, faz parte dessas estatísticas. Ela mora em Santíssimo, no Rio de Janeiro, com a mãe, o padrasto e a irmã, e, desde criança, frequenta a igreja Assembleia de Deus.

Influenciadora digital, Tatiana tem mais de 300 mil seguidores no TikTok e 90 mil no Instagram, onde começou a ganhar popularidade com vídeos de humor que desmistificam estigmas sobre evangélicos. "As pessoas têm essa ideia de que evangélico tem que usar coque, saia abaixo do joelho, e não é assim", diz ela.

É só entrar na casa de Tatiana para perceber três coisas: a união da família, a forte presença da fé evangélica e o estímulo ao pensamento crítico. "Lá na nossa Igreja, temos um grupo jovem e a gente é bem liberal. A gente discute bastante sobre assuntos polêmicos e cada um dá a sua opinião. É claro que tem aquelas divergências, mas com respeito", conta.

"Sobre aborto, por exemplo, eu não posso simplesmente apontar o dedo na cara de uma menina que foi abusada sexualmente, que engravidou e que quer tirar aquela criança por conta de um trauma muito grande. Não posso dizer: 'você não vai fazer isso porque você vai pro inferno' ou dizer que ela precisa seguir o que eu acredito. Precisamos ter em conta os direitos humanos e chegar a um consenso."


Quase voto em Bolsonaro

Em 2018, Tatiana planejava votar em Bolsonaro, ao saber que havia um candidato que se apresentava como cristão e tinha Deus no slogan de campanha, mas mudou de ideia depois que uma professora sugeriu que pesquisasse mais sobre o então candidato à Presidência.

A jovem conta que, ao procurar mais informações sobre Bolsonaro, ficou impactada por dois vídeos em particular: um em que ele sugere que mulheres não devem ganhar o mesmo salário que homens porque engravidam e outro em que ele declarou, numa palestra no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, que quilombolas "não servem nem para procriar".

"Eu vi que ele é uma pessoa que apoia causas que eu não apoio, um tipo de homem que rebaixa uma mulher por ser mulher, que é preconceituoso com outras pessoas de outras religiões", diz.

"Daí eu percebi que não faz sentido votar em alguém pelo simples fato de ele se dizer cristão. Ele pode se dizer cristão e não seguir os preceitos, não agir como cristão."

Tatiana e toda a família dizem que pretendem votar em Lula, na eleição de outubro. "De todos os candidatos que estão aí, Lula é o que mais se aproxima dos preceitos cristãos, que tem uma preocupação com o pobre."

"Eu procuro um candidato que queira realmente mudar o quadro que está o país, porque literalmente virou um caos. As pessoas estão comprando osso para comer em casa, é desumano. Quero uma pessoa que fique indignada, porque muitas pessoas estão sendo realmente esquecidas por serem pretas e por serem pobres."

Assim como Tatiana, Alexia Pimenta se enquadra no perfil majoritário de evangélicos brasileiros. É jovem, mulher e negra. Aos 22 anos, é pastora da igreja Sarando a Terra Ferida. Mas, diferentemente de Tatiana, votou em Bolsonaro em 2018 e pretende repetir o voto nele.

Ela recebeu a equipe da BBC News Brasil em casa, ao lado do marido, em Belford Roxo, no Rio de Janeiro.

"Vi que Bolsonaro era um homem conservador, alguém que zela pelo pai, pela mãe. Percebi nele alguém de punho firme, que queria lutar pela família, lutar pela causa. Porque sabemos muito bem que a família é a base de tudo", disse.

Alexia diz que sente por parte da "esquerda" uma tentativa de "imposição de valores".

"O PT e todo o povo da esquerda, eles sempre apresentam algumas coisas, falam algumas coisas que a princípio a sociedade fica: 'nossa é isso que nós precisamos'. Eles tentam disfarçar a imposição com a necessidade do povo, como o ativismo LGBT", critica.

"Eles querem impor, tem que ser assim. Eu não sou contra os gays de jeito nenhum, mas não apoio a prática."

Questionada pela BBC News Brasil se, assim como ela quer ter o direito de professar a sua fé e ser quem é, gays devem ter o direito de casar e ser quem são, ela respondeu:

"Eles podem lutar pela pauta deles. Eu tenho o direito de ser contra. Uma coisa é alguém agredir o outro pelo que a pessoa é. Isso aí é homofobia. Eu não aceitar não é homofobia, é um direito que eu tenho." Alexia argumenta que as propostas de criminalização da homofobia são uma tentativa de acabar com a liberdade religiosa.


Estratégia de campanha

Vários projetos que tornam crime discriminar alguém por sua orientação sexual tramitam no Congresso, mas nenhum prevê punir alguém por se dizer contra a união homoafetiva. E algumas propostas dizem expressamente que a lei não seria aplicada a discursos religiosos proferidos em igrejas.

Mas a visão de Alexia é reveladora do sucesso de uma estratégia poderosa de campanha eleitoral - a propagação da ideia de que a liberdade religiosa está em risco no Brasil.

"Uma coisa que foi muito difundida, para além da pauta da moralidade na época, e que também já está circulando nesse momento, é essa ideia de que um governo petista ou um governo nas mãos do Lula faria com que a fé evangélica, com que a fé cristã fosse proibida no país", lembra a professora da USP, Jacqueline Teixeira.

E as igrejas evangélicas, destaca a professora, têm um papel social fundamental na vida de milhões de brasileiras. Em muitos casos, elas oferecem creches, cursos profissionalizantes e uma importante rede de apoio à população mais pobre.

"Quando você é uma mulher responsável por sua família, que habita numa região periférica do país, que não tem acesso ao Estado e que tem acesso a uma igreja que te ajuda, se você começa a perceber que isso vai ser colocado em risco, você vai apostar na candidatura que está dizendo que vai proteger isso", diz Teixeira.

"Essa foi uma jogada do Bolsonaro que certamente garantiu que essas mulheres, que não são necessariamente bolsonaristas, que não se entendem como pessoas de direita de fato, apostassem nele, principalmente no segundo turno."


Racha no eleitorado evangélico

Bolsonaro venceu o candidato do PT, Fernando Haddad, com uma diferença de 10,7 milhões de votos em 2018. Segundo cálculos do demógrafo e pesquisador do IBGE José Eustáquio Diniz Alves, foram os evangélicos que fizeram a diferença, dando a Bolsonaro 11 milhões de votos a mais que a Haddad.

Mas, na eleição deste ano, o quadro muda. A entrada de Lula na disputa pode provocar um racha no eleitorado evangélico. Pesquisa Genial/Quaest de janeiro mostrava que evangélicos estavam divididos entre Lula e Bolsonaro. A maioria dos homens continuava a apostar no atual presidente, enquanto a maioria das mulheres pretendia votar em Lula.

Depois, uma pesquisa que saiu em 21 de março revelou uma recuperação de parte do apoio evangélico por Bolsonaro. Os dados revelam que as evangélicas agora estão praticamente divididas entre o presidente e o petista.

A pastora Jacqueline Rolim, de Brasília, está entre as evangélicas que votaram em Bolsonaro em 2018 e que agora pretendem votar em Lula.

Em setembro de 2021, ela postou um vídeo nas redes sociais, dizendo que se arrependeu do voto no presidente. Jacqueline contou à BBC News Brasil que na eleição passada estava decepcionada com o PT porque Lula se aliou a partidos de centro e direita para governar.

"Quem gostava das ideias que ele pregava antes, como os trabalhadores, ficou decepcionado. Foi o meu caso. Nós ficamos. Eu me senti traída", disse. Em 2018, Jacqueline votou em Marina Silva no primeiro turno. No segundo, se viu obrigada a escolher entre o PT e Bolsonaro.

"Eu não concordava com o Bolsonaro, mas também não conhecia ele porque quando me senti traída eu me alienei. Não quis mais saber de política. Eu pensei: 'quem sabe ele faz alguma coisa por causa dos princípios cristãos".


Durante a pandemia, Jacqueline ficou frustrada com a gestão de Bolsonaro.

"Ele começou a falar imitando alguém sem ar, não comprava as vacinas. Ele ficava dizendo: 'é só uma gripezinha'. E ficava imitando", lembra. "Eu tenho bronquite asmática, eu sei o que é ficar sem ar. Isso me doeu e eu entendi que ele estava agindo com impiedade, um anti-cristão totalmente", diz.

"O Lula enquanto era presidente correspondeu melhor às expectativas do trabalhador. O nosso sistema político é todo corrompido. A gente sabe disso e foi a minha maior decepção quando já adulta percebi isso. Mas o Lula é o único cujo projeto de governo foca em se preocupar de fato com as minorias."

Mas que outros fatores explicam o fato de homens evangélicos continuarem com Bolsonaro enquanto as mulheres como Jacqueline estão repensando o voto?


Pauta armamentista, pandemia e política social

A professora da USP Jacqueline Teixeira avalia que Bolsonaro representa um "modelo de masculinidade" que tem apelo entre parcela dos homens brasileiros, sendo eles evangélicos ou não.

"O homem médio brasileiro aciona e se sente representado por esse modelo, que está muito relacionado a uma espécie de composição bélica. Então, a arma na mão, fazer revólver com os dedos, ou a irreverência de Bolsonaro em lidar com protocolos", diz.

"E tem uma outra coisa especificamente relacionada aos homens evangélicos, que é uma configuração teológica que está relacionada a essa ideia de que quanto mais a pessoa é imperfeita e quanto mais ela é incapaz, mais ela vai fazer porque Deus vai usá-la."

Essa narrativa de que Deus usa os incapazes como instrumento da vontade dele, e que "os humilhados serão exaltados" está presente em várias passagens bíblicas. E essa mensagem foi explorada na campanha eleitoral de 2018. Pouco depois de vencer a eleição, Bolsonaro participou de um culto com Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, e disse:


"Sei que não sou o mais capacitado, mas Deus capacita os escolhidos".

Mas, segundo a professora da USP, as mulheres têm prioridades diferentes e avaliam a gestão de Bolsonaro com outra ótica. A centralidade da pauta armamentista e o alto número de mortes durante a pandemia estariam influenciando, diz ela, o distanciamento de evangélicas.

"Ali em 2019, nas pesquisas de opinião que a gente rodou, a gente já via que algumas mulheres evangélicas estavam se distanciando do voto e já arrependidos por terem votado no Bolsonaro por conta da pauta armamentista e da centralidade da pauta armamentista. Os homens, não. Eles já se sentiam mais confortáveis em relação a isso."


Proteção da família

Mas Bolsonaro tem se esforçado para se reconectar com as eleitoras, principalmente por meio da primeira-dama. Michelle Bolsonaro, que é evangélica, tem participado, junto com a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, de encontros com mulheres evangélicas pelo país.

O presidente também mantém o apoio de parcela importante das fiéis ao reiterar com frequência a promessa de "proteção à família". A preocupação em "proteger a família" é, de fato, central na fala de todas as mulheres com quem a BBC News Brasil conversou, apesar de declararem voto em candidatos diferentes.

"O que nos prende, o que nos move, é a família. E de uma forma ou de outra, se é verdadeiro nele ou não, Bolsonaro fala de família. Você não vê nenhum outro candidato se posicionar em relação à família, entende?", diz Luciene Pereira, de 49 anos, que frequenta a igreja Assembleia de Deus em Salvador.

Como muitos eleitores, ela chegou a depositar as esperanças na chamada terceira via, após se decepcionar com a gestão de Bolsonaro na pandemia.

"Como presidente de uma nação, ele podia usar a mídia para dar um conforto às famílias que estavam perdendo seus entes queridos. Muitas vezes a gente se sentia abandonado, tipo solto, como se não tivesse ninguém por nós. A gente sentia como se ele estivesse legislando contra nós brasileiros, ele sendo o nosso presidente."

Apesar disso, Luciene diz que não encontrou uma "terceira via" com propostas convincentes e descarta votar em Lula. "Vou votar de novo no Bolsonaro. Para mim, a mensagem sobre família é muito importante, é o que eu observo nos candidatos."


O que as evangélicas querem ao falar sobre proteção da família?

A ideia de proteção à família não está necessariamente associada a uma oposição a direitos LGBT - vai muito além da chamada pauta da moralidade. Ao serem perguntadas sobre que tipo de proteção desejam, as mulheres entrevistadas enfatizaram desejo por mais creches, melhores escolas, acesso à saúde e controle da violência.

Mas elas falaram muito, também, do medo que têm de que na rua, na internet ou até na escola as crianças possam receber conteúdos ou ensinamentos que façam com que deixem de ouvir ou respeitar os pais. Como se pairasse no ar um risco de perda de controle sobre a família.

"Eu vejo famílias perdendo os seus filhos para ideologias. Os jovens entram na faculdade e lá são ensinados que você pode fazer o que quiser sem assumir consequências. 'Eu faço o que quero, vivo do jeito que quero, sem respeitar ou ouvir meus pais'", disse a pastora Raquel Prado, em conversa com a BBC News Brasil do seu apartamento em Taquara, no Rio de Janeiro.

A cientista política Ana Carolina Evangelista, diretora do Instituto de Estudos da Religião, observa que existem duas maneiras de se conectar com as mulheres por meio da demanda delas de "proteção da família".

"Uma delas é propondo políticas de saúde e educação que atendam às necessidades delas. A outra é explorando medos. O medo de perda de controle, medo de extinção das igrejas evangélicas, o medo de que os filhos deixem de respeitar os pais ou possam ter acesso a conteúdos na escola com os quais elas não concordam", afirma.

Jacqueline Teixeira, professora da USP, concorda que a preocupação com a perda de controle familiar possivelmente será instrumentalizada na campanha de 2022.

"Essas mulheres, quando falam em respeito à família, estão abordando as posições das pessoas dentro do contexto familiar. Então, filhos que obedecem e respeitam seus pais, coisas que crianças de determinada idade não podem ver. E esse temor de perda de controle foi muito instrumentalizado na eleição de 2018 e deve voltar a ser explorado nas campanhas deste ano."

De olho no voto evangélico, todos os principais candidatos já estão elaborando estratégias para tentar conquistar esse público. Lula participou de uma transmissão ao vivo com eleitores cristãos e tem se reunido com pastores. Já Bolsonaro mantém a aliança com o pastor Silas Malafaia, da igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, além de cumprir a promessa de indicar um ministro evangélico, André Mendonça, para o Supremo Tribunal Federal.

Ou seja, o enfoque dos candidatos até agora tem sido em formar alianças com líderes das grandes denominações evangélicas - e a maioria deles são homens e brancos.

Mas é a conexão com as evangélicas que pode definir o resultado da próxima eleição para presidente. "Eu posso pedir uma orientação do meu pastor. Mas o voto é meu e quem manda no meu voto sou eu", diz Luciene Pereira, que frequenta a Assembleia de Deus em Salvador.

Vai ter mais chances de vencer o candidato que souber ouvir e responder às preocupações de mulheres como Luciene, Alexia, Jacqueline, Raquel e Tatiana.

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