Carta aberta aos amigos por Ricardo Gondim


Noto uma decadência célere em minha geração. Chegaram os dias maus? Monstros saem das cavernas em maior número. Cinismo e frieza se misturam tanto na política como na religião. Fico surpreso com o número de pessoas que consegue justificar genocídio. A falta de alternativa nos fóruns econômicos agudiza doenças e fome. A necessidade da indústria bélica de renovar os estoques e testar novos mísseis não poupa crianças e idosos. Em tempos difíceis, precisamos dar as mãos, semear afetos e reativar o hábito de abraçar. Sinto que devo redobrar o empenho e não perder um só amigo. Carecemos uns dos outros, daí a carta.
Por favor, cuidem-se. Entendo que a maioria de vocês não fuma, não bebe exageradamente e sabe dos malefícios do colesterol. Não, não falo de um cuidado periférico. Peço que cuidem da alma, a indescritível força que nos faz humanos. Procurem aprender a gostar de música clássica (até as vacas leiteiras sabem dos benefícios). Leiam romances, novelas, ficção científica, poesia. A estrada do manicômio está pavimentada com teses argumentativas. Debates intermináveis sobre minúcias filosóficas e questiúnculas teológicas enlouquecem. Há pouco visitei um amigo internado numa clínica. Imaginem minha tristeza quando o vi, repetindo para as paredes que havia descoberto o significado do 666 do Apocalipse.
Por favor, fujam do pecado. Não, não me refiro às tentações menores catalogadas nos manuais religiosos; elas não conduzem à santidade, mas ao moralismo. Lembrem: o que nos desgraça está ligado ao poder. Na oração do Pai-Nosso, Jesus ensinou a pedir a Deus: não nos deixe cair em tentação, mas nos livre do mal. Dizem os melhores exegetas que os protestantes citam uma cláusula final apócrifa.  -Pois teu é o Reino, o poder e a glória para sempre. Essa última frase não faz parte da prece original. Há consenso de que algum escriba, séculos depois, resolveu interpretar o significado do mal que Jesus nos ensinou a pedir para ser livres. Quando afirmamos teu é o reino, o poder e a glória, reconhecemos: o mal mais horroroso vem da cobiça do poder. Aceito a interpretação do monge anônimo. Guardem a lição: o anel de Tolkien nunca deixa de ameaçar. Nunca esqueçam: ninguém é invulnerável. O poder transforma anjos em demônios e faz com que homens e mulheres virem diabos.
Por favor, lembrem: as duas únicas dimensões de vida que dispomos são o passado e o futuro. O futuro se desfaz tão velozmente em passado que nunca conseguimos estancar o presente; ele escapa por entre os dedos. Viver se resume em esperança e em lembrança. Todos os nossos atos, um dia, serão saudade ou remorso. Semeamos hoje para colher no porvir. Cada pessoa sempre escolhe como será o seu futuro. Não atrofiem a alma com ansiedade desnecessária – toda esperança mal antecipada pode virar ansiedade.
Restam conselhos triviais: não se atrevam na política sem enorme cuidado – não tolero imaginar qualquer um de vocês saindo de camburão da Polícia Federal. Evitem andar de motocicleta. Não parem em sinal de trânsito tarde da noite. Cuidado com praias infestadas de tubarão. Aos homens, sugiro: abandonem o paletó e a gravata e nunca, em hipótese nenhuma, tinjam os cabelos. Às mulheres, advirto: não apliquem botox nos lábios.

Com carinho,


Ricardo


Soli Deo Gloria

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