A mulher triste do poço e a gratidão que precede a alegria
A gratidão é irmã siamesa da alegria. Mas num mundo incoerente que se atreve a transformar a alegria em um produto de marketing, surge o espetáculo de horror: sorrisos por fora, mas tristeza por dentro. Adestrados a fabricar sensações de euforia – como dependentes químicos -, consumimos tudo que nos dê um mínimo de felicidade. Mas investimos quase nada no exercício da gratidão.
A mulher triste num poço
Quando Jesus passou por Samaria, foi até a um poço, por volta de meio-dia, e lá encontrou-se com uma mulher triste – sem família estável, sem uma fé respeitada, sem a fidelidade de um amor verdadeiro. Foi a esta mulher que Jesus pediu um favor: “dê-me um pouco de água”. Ela ficou surpresa com o pedido vindo de um judeu (judeus e samaritanos não se davam bem).
Não foi um simples pedido que exigiria uma mera gentileza. Era uma revelação. A mais básica das solicitações precedia o descortinar do maior mistério: o Messias.
Aparentemente, a mulher é quem deveria dar água a Jesus, mas, ao contrário, foi ele quem ofereceu saciar a sede dela. E para sempre.
A imagem que Jesus cria na mente daquela mulher (e dos leitores de hoje) é interessantíssima. Um poço sem fundo com um líquido eterno. A busca existencial daquela mulher chegaria ao fim, mas o resultado desta busca não. Duraria para sempre numa incessante profusão de alegria.
Aquela mulher triste foi envolvida pela revelação do Cristo e pela certeza de que ele a conhecia como ninguém.
O convite de Jesus para o saciamento veio acompanhado do amor incondicional e gerou a alegria no coração da samaritana. Acompanhe o relato em João 4. Veja como o ânimo dela mudou completamente ao ponto de prontamente espalhar a notícia sobre Jesus para outros (Jo 4.39-41). Agora ela está grata por ter conhecido o Messias, por ter encontrado o que buscava, por ter sido aceita.
Quem não é grato não consegue experimentar nada mais do que momentos de prazer descartável. Quem é preenchido pela gratidão reconhece que foi encontrado pelo Messias e, assim, no fundo do seu ser, aquilo que era amargura, pessimismo, ressentimento e desesperança vai dando lugar ao contentamento, à saciedade. E aí vem a alegria. Naturalmente. Sem alarde, com sinceridade.
Gratidão, apesar de…
A gratidão não surge no vácuo, sem contexto, sem motivo. Ela é fruto da maneira como encaramos a vida, de como interpretamos cada circunstância. Isso não significa fingir que tudo está bem — quando não está. Gratidão não é um virtude de ingênuos. Trata-se de uma maneira sábia e sensível de perceber a realidade como um todo e integrada.
Se nem sempre a tristeza é ilegítima, por sua vez, nem sempre a alegria é real. A vida tem feiura, tem dureza, tem confusão, tem decepção, tem pecados. Nossos corações são maus. Os poderosos muitas vezes são injustos e a sequência existencial nem sempre obedece nossa lógica. Carregamos feridas que ainda causam dores. Temos medo quando uma ameaça de aproxima. Alguém irá negar estas coisas? Não deve. Mas alguém será refém delas? Também não deve.
Se a gratidão precede a alegria, vale dizer que este mesmo sentimento existe apesar de. É um ato de resistência, de superação, de enfrentamento. Somos gratos porque a coragem nos deu condição de enfrentar a vida. Pode do chão seco brotar água limpa.
Gratidão e esperança
Vale a pena lembrar, no entanto, a incompletude da gratidão. Apesar da sensação de saciedade, ela sempre está inacabada, porque em sua essência, o olhar que a move espera que as coisas melhorem. Nem tudo é palpável para quem exercita a gratidão. Mas ao enxergar a graça nos acontecimentos de hoje, o grato já mira, pela fé, a completude do que virá. E caminhamos: incompletos, mas esperançosos.
Foi assim o olhar de Jesus: “abram os olhos e vejam os campos! Eles estão maduros para a colheita” (Jo 4.35). Ainda não vemos o fruto, mas, sem dúvida, ele surgirá.
Não dá para sustentar nenhum tipo de gratidão sem uma migalha que seja de esperança. Quanto a isso, a Palavra de Deus nos enche de motivos. Somos o Povo da Promessa. Somos os que teimam em esperar o Messias. Somos os que aguardam a Colheita. Somos os que sabem que o fim de todas as coisas trará algo melhor do que o que hoje existe.
A mulher samaritana cavou fundo e encontrou alegria. Os seus conhecidos também. O Senhor Jesus ensinou seus discípulos a desenvolverem a esperança de que o trabalho iniciado – mesmo árduo – seria concluído (Jo 4.34).
Gratidão é mais do que bons sentimentos. É antecipar o caminho da alegria. É ser saciado pela água que torna a vida, de fato, eterna.
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