Cultos evangélicos e clipes de funk ostentação se entrelaçam em investigação artística
No centro das atenções, um carro importado, desses exibidos no meio de qualquer shopping center de grande porte. A presença destoante do automóvel simboliza a possibilidade de consumo, e as figuras responsáveis por colocá-lo ali somente reforçam a mensagem - aquele objeto é, ao mesmo tempo, chamariz e prova cabal do discurso proferido. Em volta, há grande parafernália, entre caixas de som, câmeras de vídeo, equipamentos de iluminação. O público-alvo é formado por pessoas de todos os tipos, embora os menos abonados costumem formar um nicho especialmente voraz. A maioria dos espectadores acredita piamente na falação (alguns desconfiam e outros, em menor número, têm certeza se tratar de faz-de-conta - um mise-en-scène, para se ater ao termo usado na dramaturgia). Dada a descrição do espetáculo, o leitor diria se tratar de culto evangélico na Região Metropolitana do Recife ou gravação do novo videoclipe de MC do funk ostentação? Para a fotógrafa brasiliense radicada em Pernambuco Bárbara Wagner, as respostas estão corretas.
Duas investigações artísticas assinadas por ela dão conta de esmiuçar, provocar reflexões e, de certa forma, aproximar universos paralelos - Crentes e pregadores (2014), em igrejas, e Mestres de cerimônias (2016), nos bastidores de filmagens para divulgar o trabalho de funkeiros de São Paulo e do Recife. O primeiro acaba de receber menção honrosa no 15º Prêmio Brasil Fotografia e virará exposição. O outro volta em março e vai durar oito meses. Os registros de fiéis e pastores foram feitos justamente quando o país quase todo estava “parado”, com olhares voltados à Copa do Mundo de 2014. Quase todo, pois a fé não tira férias.
Enquanto a bola rolava no campo, um “show pop, com telão, microfone, palco e cortinas” era montado em várias cidades para fazer promessas veementes. Na frente das lentes, os performáticos condutores posam enquanto pregam o “sucesso individual” dos pagadores de promessas: “Se não pagar sua salvação, ninguém vai pagar por você. Jesus está esperando você investir nele para ele investir em você. É para você salvar a si mesmo, ter condições de comprar carro, casa. Em muitos cultos, não há leituras do evangelho. Falam em dívidas e dízimo”, analisa Bárbara.
A mesma prosperidade “pessoal e intransferível” se aplica ao funk ostentação de São Paulo (e do Recife), surgido da mescla entre as batidas cariocas às contestações do rap paulistano. Segundo Bárbara, nasce associado ao submundo do crime, cantado por ex-prisioneiros interessados em vida nova, e não só em relação à comunidade. O orgulho de participar, ter, consumir guarda semelhanças com o sentimento de quem paga salário mínimo por mês às igrejas. “É uma indústria pesada. Os dois universos mostram prosperidade. Não à toa, há funkeiros evangélicos”.
Na série fotográfica de 2014, pastores estão sempre no palco. Fiéis, na rua. O modo de observar a “indústria evangélica” foge das imagens estereotipadas de pessoas com lágrimas nos olhos e mãos ao céu. Os retratos revelam detalhes sutis, como o jeito de segurar a Bíblia, o jeito de se vestir, a expressão no rosto. “É quase etnográfico”, diz Bárbara Wagner. “Não dá para simplesmente falar o tempo inteiro que acha horrível tanta gente ‘ignorante’ ligada a essa religião, porque o evangélico está muito próximo. É o motorista de táxi, o faxineiro, o porteiro. Ele está muito próximo, muito envolvido”.
Arte ignorada
Ignorar a cena musical do brega mais acelerado, recifense, influenciado pelo funk ostentação, é impossível para Bárbara. O movimento “mostra a força produtiva de nova classe emergente, com economia própria, riquíssima”. Como ela define, são jovens de voz própria, que nunca sonharam em trabalhar com espetáculo. E se eles têm voz e palco, qual o papel da fotografia artística senão dar visibilidade? “Quero falar do que está invisível, mostrar como existe algo consolidado e ignorado pela arte com ‘A’ maiúsculo”.
Assim como os evangélicos, os funkeiros são retratados sem a carga de lugares-comuns associados à imagem da classe artística. Embora a cena seja vista pela elite cultural como “kitsch”, carnavalesca, excessiva, diz, o baile da imaginação pouco tem a ver com a realidade. “Casa de show de brega não parece cabaré. É reformada na cerâmica. As cantoras não se vestem como dançarinas da Calypso. É tudo minimalista, roupas pretas e sombrias, foco no mainstream. Está mais difícil negar essas economias porque elas estão se mascarando de elite. Os meninos não estão cheios de corrente. Estão tomando conta do mainstream imitando-o. Você começa a ver que isso é cultura, e que não é moralmente inferior”.
diariodepernambuco.com.br
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