Sexualidade e redenção
O amor pode ser pecaminoso? O ensino bíblico e a tradição cristã afirmam que sim. O apóstolo Paulo diz, por exemplo, que “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males” (I Timóteo 6.10). Outro apóstolo, João, em sua primeira carta, também aconselha: “Não ameis o mundo, nem as coisas que há no mundo”. Segundo a Palavra de Deus, portanto, existem, sim, formas de inverter ou perverter o amor. E esse amor pecaminoso não se dirige, apenas, a coisas materiais. A certa altura de seu ministério terreno, Jesus afirma: “Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim” (Mateus 10.37). É claro que devemos amar nossos pais. O quarto mandamento do decálogo nos manda honrar pai e mãe. No entanto, quando esse amor tem precedência sobre o amor a Deus, ele coloca em risco a ordem dos nossos afetos – e o objeto do nosso amor, facilmente, se transforma em ídolo.
Fomos criados por Deus para amar e ser amados. Essa é a condição básica do ser humano. Deus é amor, e não poderia nos criar de outra forma. No entanto, este propósito do Criador é corrompido sempre que nos afastamos dele e viramos as costas à sua vontade. Sempre que amamos alguma coisa ou mesmo alguém mais do que a Deus, o amor corre o risco de tornar-se pecaminoso.
O propósito do Criador para o ser humano, particularmente em relação à sua sexualidade, foi desenhado na criação. É nisso que os cristãos creem. A Bíblia começa com a afirmação de que fomos criados à imagem e semelhança de Deus. Esta é, aliás, a declaração mais surpreendente de toda a narrativa da criação: o Deus Criador cria o ser humano à sua imagem. No mundo antigo, as imagens representavam a presença daquele que estava ausente, fosse ele um rei cujo trono e palácio encontravam-se distantes, ou um deus cujo templo e altar ficavam longe. Porém, o Deus revelado na Bíblia escolhe o ser humano como representação de sua presença no mundo. Na revelação bíblica da criação, existe um vínculo entre o humano e o divino. Todavia, a imagem de Deus no ser humano não se expressa no indivíduo solitário, encapsulado em si mesmo, mas é representada no homem e na mulher. A criatura divina é o ser humano sempre em relacionamento. O propósito da criação é, portanto, a comunhão entre o homem e a mulher; e, nesse relacionamento, a identidade humana é afirmada. O casamento – a aliança de amor entre um homem e uma mulher –, determina o fundamento da comunidade humana, e define a sentença básica da sexualidade estabelecida pelo Criador.
Em uma cultura confusa em relação aos papéis do homem e da mulher, é fundamental retomar o propósito da criação para construir uma compreensão da sexualidade humana como forma de expressar, primariamente, a natureza divina – e não o desejo humano por prazer ou satisfação pessoal. A forma como honramos e dignificamos nossa identidade sexual requer a aceitação plena e incondicional de quem somos diante do Criador, como homens e mulheres, construindo relacionamentos expressivos dessa condição.
Existe, hoje, muita crítica ao Cristianismo nesse aspecto. Movimentos, instituições ou, simplesmente, indivíduos criticam e, algumas vezes, atacam a fé cristã por considerá-la uma religião restritiva da prática sexual. É preciso deixar claro que o Cristianismo restringe, sim, a prática sexual; porém, em nenhum momento a nega. Muito pelo contrário: ele a afirma. Em seu livro Cristianismo puro e simples, o escritor irlandês C.S. Lewis diz o seguinte: “O Cristianismo é praticamente a única entre as grandes religiões que aprova por completo o corpo – que acredita que a matéria é uma coisa boa, que o próprio Deus tomou a forma humana e que um novo tipo de corpo nos será dado no Paraíso e será parte essencial da nossa felicidade, beleza e energia. O Cristianismo exaltou o casamento mais que qualquer outra religião; e quase todos os grandes poemas de amor foram compostos por cristãos. Se alguém disser que o sexo, em si, é algo mau, o Cristianismo refuta essa afirmativa instantaneamente.”
Por outro lado, o Cristianismo também reconhece que o ser humano não pode se entregar cegamente aos seus instintos e desejos, e por essa razão ele estabelece limites e fronteiras para a prática sexual. Esses limites são necessários para ordenar os afetos humanos e disciplinar os desejos. A revista Ultimato, em sua edição número 352, traz como matéria de capa o seguinte tema: “A descoberta da compulsão”. Num dos artigos, a publicação faz referência a alguns escritores e psicanalistas que reconhecem os riscos dos desejos descontrolados. Uma das citadas é a psicanalista Maria Rita Kehl, que aconselha: “É melhor admitirmos, humildemente, o mal que nos habita. É a chance de aprendermos a lidar com ele. Pois parece que, quanto mais ignoramos a violência do desejo, mais somos vitimas de suas manifestações”. Ela cita também o filósofo e escritor Luiz Felipe Pondé, que afirma: “Somos seres do desejo e não da razão. Com isso, não quero dizer que não sejamos racionais, mas sim que o desejo se impõe à razão […]. Devoramos tudo à nossa volta por conta dessa força irracional chamada desejo.”
Na sociedade humana, todos reconhecem que limites são necessários, em qualquer atividade ou comportamento. A questão é: quem os define e quais seriam eles? Qualquer grupo social ou indivíduo, independentemente de credo ou formação, define seus limites a partir de algum pressuposto. Os cristãos creem na Bíblia como palavra inspirada por Deus e sua regra de fé e prática. Ao apresentar os limites, o Cristianismo cria um espaço seguro, não só para a pessoa, mas também para toda a sociedade humana, a fim de que o ser humano possa desenvolver seus afetos e amadurecer seus relacionamentos.
O argumento do amor busca sustentar e legitimar toda e qualquer forma de relacionamento, inclusive as relações sexuais que acontecem fora dos propósitos da criação, bastando para isso dizer que aquelas pessoas se amam. Por exemplo, muitos perguntam: pessoas do mesmo sexo não podem se amar? O Cristianismo responderia dizendo que sim; que não só podem, como devem. O problema é que usam a expressão “amar” como sinônimo de sexo. Amor e sexo não são a mesma coisa. Deus jamais proibiu alguém, quem quer que seja, de amar. Muito pelo contrário. No entanto, o ato sexual tem limites impostos pelo próprio Senhor. Desde o início, o testemunho bíblico se opôs deliberadamente às pretensões de seu ambiente cultural, afirmando que, na criação, Deus designou o homem e a mulher para uma identidade específica nos termos de uma aliança.
FRONTEIRAS MORAIS
Essas fronteiras são, hoje, fortemente criticadas e refutadas, muitas vezes, de maneira hostil, tanto pela cultura quanto pela mídia, que buscam criar uma sociedade sem princípios morais. O salmista levanta uma pergunta crucial para nós, hoje: “Destruídos os fundamentos, que poderá fazer o justo?” Sem fundamentos, a justiça se perde, rapidamente. Uma sociedade sem fundamentos morais caminha, inexoravelmente, para o caos – um cenário de violência cada vez mais comum – ou para algum regime totalitário, que pratica a rejeição ou que rejeita qualquer opinião que não seja aquela defendida por alguns movimentos e grupos organizados.
Somos, hoje, uma sociedade sem fronteiras morais. Somos uma sociedade que sabe fazer sexo, mas que encontra dificuldade para amar. Buscamos satisfazer nossos desejos e impulsos, mas resistimos a construir relações fiéis e duradouras. Nenhuma sociedade, seja ela cristã ou não, consegue sobreviver sem limites ou fronteiras morais. Para o Cristianismo, não podemos falar da sexualidade humana sem levar em conta a realidade do pecado. Deus nos criou para nos relacionarmos com outros, para amar e sermos amados; existimos para cuidar, nutrir e expressar afetos na amizade e comunhão. Deus também nos criou como seres sexuados, diferentes, o que nos torna capazes para o ato sexual como expressão única, entre o homem e a mulher, numa relação estável e fiel, como símbolo da aliança que Deus estabelece com sua criação. Neste relacionamento único, participamos da criação procriando e construindo a comunidade humana. É neste modelo que encontramos a possibilidade do mistério do amor, da segurança humana, de confiança e o espaço para receber os filhos que virão, oferecendo-lhes o ambiente necessário para seu desenvolvimento integral.
Acontece que o pecado corrompeu esse projeto divino. Antes de prosseguir, vale uma pequena explicação sobre o significado do pecado. Não se trata de um conceito psicológico ou sociológico, mas teológico. Ele diz respeito a Deus e seus propósitos revelados nas Escrituras Sagradas. É comum ouvir pessoas que não creem em Deus nem na sua Palavra protestando contra o fato de os cristãos reconhecerem que um determinado comportamento é pecaminoso. Isso é um tanto estranho. Não faz sentido que alguém que não professa a fé cristã, cujos princípios e valores não são determinados por sua fé em Cristo e na sua Palavra, proteste contra os que assim acreditam. Pecado é uma realidade humana; ele envolve todos os seres humanos. No entanto, para aqueles que não creem e não reconhecem o Criador, muito menos a condição que a queda impôs ao ser humano, não faz sentido protestar contra aquilo em que não acreditam.
Os cristãos consideram que o pecado trouxe a alienação do ser humano para com o seu Criador. Ao virar-lhe as costas, o ser humano perde o princípio da ordem estabelecida por Deus, e se entrega aos seus instintos e paixões desordenados; e é aqui que o amor pode tornar-se pecaminoso. Quando a Bíblia reconhece como pecado toda prática sexual que acontece fora dos termos da aliança entre um homem e uma mulher, conforme designado por Deus na criação, é porque todas estas relações ferem o propósito do Criador para o ser humano, ao estabelecer a família como base da sociedade humana.
A vontade de Deus deve ser o guia de nossa identidade. A comunhão do casamento é o projeto divino para o ser humano como ser sexual. Este princípio não está limitado ao tempo nem à cultura, mas é fundamento essencial e critério fundamental para a compreensão da sexualidade. Este é o padrão que define a doutrina cristã a respeito do comportamento sexual.
PROPÓSITO DIVINO
Muitas pessoas argumentam que uma limitação sexual pode implicar em algum tipo de privação. Num certo sentido, isso é verdade. Aliás, ninguém vive sem limites ou algum tipo de privação. Jesus usa esse argumento no célebre Sermão do Monte. Ali, o Mestre afirma: “Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não seja todo o teu corpo lançado no inferno”. Ele usa esta imagem forte para falar do adultério. No entanto, a mesma ilustração pode ser usada para qualquer outra forma de expressão sexual fora da vontade divina. O propósito de Deus não é que o indivíduo fique entregue aos seus instintos e paixões, mas que seja submisso ao seu Criador, e assim experimente a plenitude dos seus afetos e a liberdade em Cristo.
Lewis afirma: “A regra cristã é clara: ‘Ou o casamento, com fidelidade completa ao cônjuge, ou a abstinência total.’ Isso é tão difícil de aceitar, e tão contrário a nossos instintos, que das duas, uma: ou o Cristianismo está errado ou o nosso instinto sexual, tal como é hoje em dia, se encontra deturpado. E claro que, sendo cristão, penso que foi o instinto que se deturpou”. A desordem sexual sempre contribuiu para uma desordem afetiva. O domínio próprio – a disciplina espiritual mais rejeitada na cultura moderna – é fundamental para reorientar nossos afetos e balizar nossa sexualidade. Existe um vazio e um anseio na alma humana que só pode ser satisfeito em Cristo, e isso só será plenamente realizado na redenção final. Não existe plenitude absoluta sem redenção absoluta. Para enfrentar o pecado, precisamos reconhecer a necessidade de renunciar a ele, resistir à tentação e optar pelo Reino de Deus. Precisamos, também, reconhecer que fazemos parte de uma sociedade caída e integramos uma Igreja que também traz as marcas do pecado. Logo, não adianta esconder a realidade do pecado: ela precisa ser enfrentada, desmascarada e restaurada em Cristo com a mesma misericórdia com que o Filho de Deus nos assiste em nosso pecado.
Os cristãos creem num Deus Criador, que nos criou como seres sexuais e encontrou prazer em sua criação. Cremos em um Deus pessoal, numa ordem que ele estabeleceu. Cremos nos seus absolutos; cremos num Reino de vida e paz no qual reside o sentido da existência humana. Cremos que, se seguirmos o propósito de Deus para nossa sexualidade, encontraremos mais plenitude de vida e maior prazer.
Como cristãos, experimentamos a liberdade conquistada pelo perdão dos nossos pecados na reconciliação com Deus, conosco e com o próximo. A reconciliação abre a possibilidade para um novo começo, que a graça divina nos proporciona pelo poder do Espírito Santo. Somente por meio da graça de Deus e do poder do Espírito podemos ser fiéis em nossos relacionamentos, bem como enfrentar e resistir ao modelo imposto pela sociedade moderna, que nos oferece um tipo de prazer que nega a alegria que nasce de uma vida comprometida com o propósito do Criador.
A Igreja cristã tem um importante papel no chamado de Deus para a reconciliação de todas as coisas em Cristo, incluindo a sexualidade humana. Paulo afirma que, “se alguém está em Cristo, é nova criação” (II Coríntios 5.17). Ser cristão não torna ninguém melhor ou superior que os seus semelhantes; ser cristão significa que fomos libertos de um modelo cultural, com seus valores – ou antivalores, que aprisionam e oprimem –, e fomos atraídos por Cristo para uma nova vida e uma nova criação. Não temos, em nós mesmos, nenhuma alternativa melhor, mas cremos que Deus tem. Por isso, somos chamados à tarefa de promover a reconciliação. E semelhante tarefa não acontece numa arena hostil de rupturas e maniqueísmos, do tipo “nós versus eles”. Como disse Paulo, somos o que somos pela graça de Deus. Não existe mérito algum em nós. Não somos melhores que ninguém. Tudo que temos, e tudo o que podemos oferecer, é a graça redentora de Jesus Cristo.
A fé em Cristo nos oferece as bases para uma nova ética e moral focada no tipo de homem e mulher que Deus deseja que sejamos, e não em regras moralistas. O ser humano pretendido por Deus nos foi revelado em Jesus Cristo. Somente pela misericórdia de Deus é que podemos viver esta nova realidade e oferecermos nossos corpos “como um sacrifício vivo, santo e agradável a Deus,” que nos possibilita a experimentar a boa, perfeita e agradável vontade do Senhor.
Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília
Comentários
Postar um comentário