Ricardo Gondim - Menos farisaísmo, por favor

As mentiras, ao contrário do que se apregoa, não são todas iguais.
Existe mentira de todo tipo: inescrupulosa, malvada, perniciosa, pecaminosa, ingênua. Não se deve esquecer as inofensivas e até as nobres.
 
O que dizer das mentirinhas amorosas?
 
Aquelas que nascem de lábios apaixonados?
 
Quando o namorado sussurra, seu chamego se colore de um encarnado libidinoso.
Em nome do amor, toda e qualquer frase tem força de transformar-se em uma declaração arrebatadora.
Esses arroubos não seriam mentira?
 
Não há como condenar um pai, que mesmo ansioso por descanso, finja disposto a brincar com os filhos.
Quem acusa a mãe que lê uma historinha e faz de conta que acreditou nas fadas?
 
As mentiras que nascem do zêlo também não merecem desprezo.
Se ela pergunta: Engordei?
Homem nenhum pode responder com absoluta honestidade.
 
Um lânguido nem tanto é o máximo que deve ousar.
Verdade é virtude que não sobrevive sozinha.
Toda verdade tem de vir precedida pela graça. Os absolutamente sinceros são na maioria das vezes intoleráveis.
Toda sinceridade carece da graça porque nela o amor se sobrepõe à retidão. Quem ama não teme ser rotulado como inconstante. Misericórdia encobre.
O intuito de proteger patrocina um tipo de mentira: a incoerência.
Há um provérbio bíblico, inclusive, que não condena esse jeito de encobrir os fatos: O ódio espalha dissensão, mas o amor esconde os pecados (10.12).
 
Quem se oporia a certas mentiras médicas?
 
Quem não se valeu delas?
Ainda não vai ser desta vez afirma o mais criterioso médico diante do paciente com um diagnóstico terminal. No corredor do hospital, os parentes combinam entre si ao saberem do veredito: Vamos entrar no quarto, mas nada de choro; temos que manter uma atitude otimista para não abatê-lo mais.
Todos disfarçam e a mentira alivia o ambiente. Os sorrisos ensaiados e as conversas amenas não passam de eufemismo.
Pura hipocrisia. Uma farsa caridosa, todavia.
 
Que tal as mentiras poéticas?
Os poetas mais exímios mentem.
Transformam sentimentos banais em amor inflamado. Realçam a força dos substantivos com adjetivos precisos. Valem-se das hipérboles para descrever as paixões. Inflamam os romances com floreios insinuantes.
A poesia tem força de transformar o rei amante em escravo e a donzela amada em rainha.
 
Fernando Pessoa foi feliz ao constatar:
 
Todo poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
 
O poeta nem sempre se dá conta de que sua malicia enriquece a vida.
 
A Bíblia relata as mentiras de vários heróis sem censurá-los. Jacó ganhou uma primogenitura enganando o pai (Gn. 27). Tamar, uma das ancestrais de Jesus, conseguiu engravidar se travestindo de prostituta para engodar Judá (Gn 38). José ludibriou a família como estratégia para não revelar imediatamente a identidade (Gn42).
O rei Davi se fez de doido como meio de escapar do ódio de Aquis, rei de Gate (1Sm 21). Rute passou a perna em Boaz, salvou-se e garantiu a genealogia do Messias (Rt 3).
 
Lógico, impossível defender o dolo, a injúria, a impostura. Certamente o mentiroso não tem lugar na roda dos justos. Tanto o farsante, como o hipócrita e o maldoso que gagueja merecem o fim dos ímpios. Contudo, não há como negar: a humanidade não sobreviveria sem o recurso da mentira.
 
Menos farisaísmo, por favor!
 
Soli Deo Gloria

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