O risco da autodestruição


Causar sofrimento a si mesmo e algo bem mais comum do que podemos imaginar.
Um dos aspectos mais libertadores da prática cristã é a crença de que, na morte de Cristo, toda culpa pode ser expiada.
O filme A missão, produção britânica de 1986, foi ambientado nas selvas sul-americanas do século 18. Nele, o personagem Rodrigo Mendoza (Robert De Niro) é um mercador de escravos que faz da brutalidade seu modo de vida. Atormentado pela culpa, ele se junta aos padres jesuítas que atendiam aos indígenas da região, numa tentativa de purgar seus erros. Penitente, Mendoza resolve carregar um pesado fardo montanha acima, como símbolo de seu remorso, até que um dos religiosos resolve dar fim àquilo. Livre da imensa carga, o criminoso arrependido descobre uma vocação que acaba se tornando a motivação de sua existência.
Causar sofrimento a si mesmo, seja por qual motivo for, ferir-se ou buscar a autodestruição é algo bem mais comum do que podemos imaginar. Muitas pessoas carregam pesos desnecessários; outras buscam possibilidades de perigos sem razão alguma, e há até aqueles que se maltratam propositalmente, numa espécie de auto-imolação física ou psicológica. Como psicoterapeuta, lido com estas questões semanalmente e tenho observado pelo menos três tipos de situações que podem levar uma pessoa à autodestruição. A primeira é a que acomete o indivíduo que se sente culpado por algo cometido por ele mesmo em algum momento da sua vida. São, geralmente, situações para as quais não há conserto, como por exemplo, a de mulheres que fizeram aborto ou de gente que, involuntariamente, provocou algum tipo de acidente que acarretou a morte de alguém. Também existem aqueles casos em que a motivação para o ato existiu, como quem comete algum crime ou dano deliberado a outrem. O sentimento de que não há perdão para o acontecido pode desencadear a tendência à autodestruição. Na cabeça dessas pessoas, é o único jeito de pagar pelo erro.
A segunda situação é aquela onde a pessoa, mesmo não cometendo nenhum desvio, sente-se um lixo. Diante de qualquer deslize, o que é normal e comum na vida de qualquer um, o sentimento é de que a própria vida não serve para nada. O autojulgamento é impiedoso nesses casos – quem é imprestável deve sofrer mesmo e merece ser destruído. Não é difícil observar que, muitas vezes, esse tipo de pensamento vem do excesso de crítica e condenação numa fase da vida, principalmente quando o ser humano ainda não tem sua autoestima estabelecida. Às vezes, tais condenações não são expressas verbalmente, mas o ambiente, a postura e a atitude das pessoas que participaram da vida daquele indivíduo quando criança ou jovem expressava, de alguma forma, censura e desaprovação.
Há também uma última situação, que é aquela onde a pessoa passa por algum sofrimento intenso nos sentimentos. É a angústia, a inquietação, o desassossego, que pode surgir nas instâncias emocionais mais profundas, trazendo muito desespero, que a própria vítima não sabe de onde vem e nem como explicar. É a dor de quem não vê um caminho para trilhar ou uma solução para minorar o sofrimento. Então, uma das formas de encontrar algum alívio é ferindo o próprio corpo. Diante da dor física, a dor emocional dá uma pausa – mas apenas uma pausa, porque ela continua lá.
Contudo, existem maneiras de encontrar alívio sem recorrer à autopunição ou até mesmo à autodestruição. Uma delas é ter coragem de falar sobre o desconforto para uma pessoa amorosa e acolhedora, alguém que saiba ouvir angústias e sofrimentos alheios sem julgar, ensinar ou querer mudar a situação. Misteriosamente, muitas vezes o simples fato de se ter alguém que ouça até o ponto de esvaziar tudo que pode ser expresso já traz organização para o caos interno. A segunda maneira é através da fé. Um dos aspectos mais libertadores da prática cristã é a crença de que, na morte de Cristo, toda culpa pode ser expiada. O apóstolo Paulo afirma isso aos escrever aos cristãos de Roma, disse o seguinte: "Para aqueles que estão em Cristo, nenhuma condenação há". E João, um dos discípulos de Jesus, afirma categoricamente: "Se confessarmos nossos pecados, ele [Cristo] é fiel e justo para nos perdoar dos pecados e purificar de toda a injustiça."
Sim, Deus conhece a dor humana. Ele mesmo viveu como ser humano, e assim conhece a nossa miserabilidade. Por isso, pode caminhar conosco, dando-nos suporte na aflição, sem que haja a necessidade de nos ferirmos. Ele foi ferido por nós; foi um homem de dores, e sabe o que é padecer.
Esther Carrenho
Cristianismo Hoje

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