Perdão: um triunfo sobre a vingança
Durante os anos 1975-1979, o outrora belo e próspero país do Camboja tornou-se uma “terra de morte” quando dois milhões de cambojanos inocentes morreram de inanição, doença, esforço ou execução nas mãos dos soldados do Khmer Vermelho. Aqueles que sobreviveram sofreram tremendo trauma psicológico.
Mesmo agora, vinte e cinco anos depois, muitos cambojanos não querem falar sobre o que eles passaram. São silenciosos sobre o passado. Treze membros da família de Sokreaksa, inclusive seus pais, foram brutalmente executados... mas pela graça de Deus, ele foi capaz de enfrentar a sua dor e perdoar os assassinos de sua família. Mas o perdão não foi fácil. Nesta história, você conhecerá Sokreaksa e lerá sobre a sua jornada do horror, do sofrimento e da perda à liberdade, à fé e ao perdão.
Desespero
Fui criado numa família grande em Siemreap, uma cidade agradável no norte do Camboja onde mangueiras, coqueiros, goiabeiras e mamoeiros cresciam em abundância. Um pequeno rio cortava a cidade gentilmente e várias casas estavam construídas às suas margens. Com onze irmãos e irmãs, eu fazia parte de uma família feliz. Meu pai era um professor, então vivíamos numa casa confortável com um quintal amplo numa área espaçosa e quieta da cidade. Meu pai tinha amor pela educação, e ele muitas vezes nos motivava a aprender ao citar o ditado, “O homem que não tem conhecimento é facilmente derrubado por aquilo que ele não entende”. Contudo, foi a boa educação do meu pai que levou à sua morte prematura nas mãos de soldados camponeses incultos e analfabetos.
Meus primeiros felizes dias terminaram subitamente em 17 de abril de 1975, quando soldados do Khmer Vermelho, que tinha dominado nosso outrora pacífico país, forçaram minha família na mira de suas armas a sair de nossa casa. Fomos colocados para trabalhar no campo, trabalhando duro do amanhecer ao anoitecer, com pouco para comer e sem lugar confortável para dormir à noite. Vivemos por dois anos sob esse regime de terror, onde o menor ato de desobediência aos soldados trazia a morte. Certa vez, meu irmão mais novo, que tinha apenas 10 anos de idade, foi falsamente acusado de roubar um pouco de grãos. Os soldados amarraram as mãos dele atrás das costas e o espancaram e chutaram até que seu rosto ficasse irreconhecível, e então o arrastaram pela vila para mostrar o que aconteceria com qualquer outro que desobedecesse a lei dos soldados. Eles repetiram o mesmo tipo de tortura com um dos meus irmãos mais velhos, de modo que todos nós começamos a perder qualquer esperança de vida. De fato, todos nós queríamos morrer. A morte parecia inevitável, ou por inanição ou por execução nas mãos dos soldados perversos.
Em torno de uma cova aberta
Certa manhã, eu vi os soldados afiando seus facões e machados e soube com certeza de que algo terrível estava para acontecer conosco. Eu corri de volta para a minha família e lhes disse, “Eles vão nos matar hoje!” Ao percebermos que a morte estava para chegar, começamos a tremer incontrolavelmente. Eu nunca tinha imaginado que o medo da morte poderia ser tão terrível. Eu abracei meus irmãos e irmãs mais novos, mas minhas mãos fracas não conseguiam se segurar neles. Os soldados vieram e nos colocaram numa carroça de bois e nos levaram da vila para a mata onde outros pais e filhos estavam reunidos. Minha mãe e minha irmã mais velha não estavam conosco, pois tinham saído mais cedo para colher nos campos.
As famílias, sabendo que a morte era iminente, começaram a dizer adeus uns para os outros. Meu pai beijou meu irmão mais novo, depois nós outros. Eu o abracei para ele não podia me abraçar de volta porque suas mãos estavam amarradas. Meu pai estava um homem impotente, e eu podia sentir seu coração, constrangido com agonia. Então a matança começou. Primeiro o meu pai e depois o resto da minha família foram golpeados e esquartejados à morte com enxadas e instrumentos sem corte. Eu fui golpeado por trás e caí dentro da cova em cima do meu pai. Outros corpos caíram sobre mim. Os soldados nos golpeavam freneticamente, mas em sua frenesi, não me acertaram. Então, presumindo que todos estivessem mortos, os soldados saíram para encontrar outras vítimas, deixando a cova aberta.
Vivo, mas não bem
Quando retomei os sentidos, eu conseguia sentir o gosto da morte, e sangue corria pelo meu nariz e minha boca, depois de meia hora, eu consegui, embora estivesse muito fraco, sair de baixo dos cadáveres. Em total desespero, eu olhei para os corpos mutilados da minha família, então estendi minha mão para fechar os olhos do meu pai. Rapidamente encontrei um esconderijo na mata e assisti em horror paralisante enquanto os soldados traziam minhas amadas mãe e irmã mais velha e as executavam da mesma maneira que tinham matado toda a minha família.
Depois do pôr-do-sol, eu fui sorrateiramente à cova e, batendo nela com os punhos e a cabeça, chorei, “Mak, por favor me leve com você, me leve com você! Eu não quero viver!” Eu clamei por minha mãe, mas ela não me ouviu. Eu me inclinei diante da cova e fiz uma promessa à minha família, “Mãe, pais, irmãos e irmãs, enquanto eu viver, eu vou vingar a sua morte.”
Por vários dias, eu cambaleei pela selva antes de vagar de volta para a minha vila natal. Surpreendentemente, as pessoas me deram boas vindas, tocando e abraçando-me, e me dizendo palavras de consolo. Elas me chamavam de “um especial” e “o ressurreto” e elas amarraram fios brancos na minha mão esquerda e convidaram minha alma e meu espírito para voltar para mim. Elas também concordaram que eu me tornaria o filho adotivo de um homem na vila. Elas me deram remédios caseiros para aliviar a dor no meu peito e o sangramento no meu nariz. Mas elas não podiam dar nada para curar a dor no meu coração.
Alguns anos depois, consegui encontrar minha única irmã viva e uma das minhas tias e sua família, e fui morar com elas. Eu voltei à escola e, em 1983, entrei para a policia. Meu ardente desejo era usar essa posição para vingar a morte da minha família amada. Eu tinha sobrevivido, mas o meu coração estava cheio de ira, amargura e uma paixão assoladora por cumprir a promessa que eu tinha feito à minha família falecida. Como um policial, eu carregava uma arma, então eu tinha o poder para matar. Mas certa vez, quando tive a oportunidade de matar um dos assassinos da minha família, uma força estranha me sobreveio e eu fui incapaz de apertar o gatilho da arma. Quando percebi que tinha fracassado para com minha família, a vida se tornou insuportavelmente miserável para mim. Eu queria ir embora do Camboja, então, em 1984, eu fugi para um campo de refugiados na fronteira com a Tailândia.
A Restauração da Minha Alma
O acampamento era vasto e abrigava 120.000 refugiados, entre os quais estavam alguns cristãos caridosos que diariamente espalhavam a mensagem do amor e do perdão de Cristo e prometiam uma nova vida de fé nEle. Eu frequentei as reuniões cristãs e ouvi suas orações. Havia uma paz nesse grupo que eu nunca tinha experimentado em nenhum outro lugar. Eu comecei a me perguntar quem era esse Jesus. Se Ele realmente me amava, será que tomaria o meu partido e me livraria do terrível desespero e desesperança que eu sentia? Depois, quando minha requisição ao Serviço de Imigração e Naturalização foi aceita, eu considerei isso como um sinal de que Deus tinha ouvido meus clamores.
Eu cheguei ao Canadá em 1989, num centro do World Vision, um lugar que parecia o céu para mim. Tantos cristãos me adotaram em seus corações. Eles me mostraram o grande amor de Cristo, que O levara a uma morte cruel numa cruz para pagar o preço dos meus pecados. Ele era o cordeiro de Deus, sem pecado, que tira o pecado do mundo. Tudo isso era tão novo e maravilhoso para mim. Tocou meu coração dolorido e despedaçado e ajudou a restaurar a minha alma. Eu sabia que nunca estaria sozinho de novo, pois o próprio Jesus andaria comigo.
Depois de completar um bacharelado no Tyndale University College e um mestrado no Seminário Teológico Providence, eu me acomodei numa nova vida no Canadá. Então, em 1996, deparei-me com uma grande decisão: Dr. Duc Nguyen do World Vision me convidou a retornar ao Camboja para ensinar na Escola Bíblica de Phnom Penh. Eu me perguntava como eu aguentaria, retornar aos lugares da minha infância e ver a cova da família novamente. As memórias dolorosas e o legado emocional de todos os eventos devastadores que levaram de mim a minha família não tinham sido apagados da minha mente. Mas Deus, em Seu grande amor para comigo, compreendeu minha dor, e agora Ele estava me levando ao lugar onde eu poderia aprender a perdoar os assassinos da minha família.
A Penumbra da Prisão
Retornar ao Camboja me forçou a admitir que andava negando a existência de ira e amargura em minha vida. Mesmo como um cristão, eu tinha conscientemente cultivado minha vingança pessoal interior contra os assassinos da minha família. A ira tinha mantido viva a esperança de que um dia eu seria capaz de cumprir minha promessa à minha família e fazer os assassinos pagarem. Um monge budista me mandara, certa vez, enterrar o passado para que não pudesse me ferir. Mas ao negar as feridas e a ira dentro do meu coração, eu nunca fora capaz de experimentar a cura completa.
O perdão é uma verdade muito dura. Eu achei difícil perdoar porque, segundo a minha justiça, os assassinos eram os que mereciam morrer—não minha família. A injustiça da sua morte programava a minha mente sempre para pensar em vingança. Eu sentia que se eu perdoasse os assassinos da minha família, eu jamais superaria a vergonha do meu fracasso em vingar a honra da minha família.
Ademais, a dor em meu coração e minha alma era simplesmente forte demais para me deixar perdoar. Eu tinha apenas treze anos de idade quando os assassinos transformaram minha existência em trevas e roubaram a alegria daminha vida. daquele momento em diante, a depressão me perseguia como uma sombra, e a amargura me envolvia e aleijada emocionalmente. Eu não sabia como as remover.
Além disso, eu tinha dificuldade em perdoar porque ninguém ainda tinha pedido de mim o perdão. Eu ansiava ouvir os algozes admitirem que o que eles tinham feito era errado, que eles tinham se arrependido do mal que tinham feito à minha família. A dura verdade é que meu anseio por obter vingança tinha criado um mundo fantasioso em minha mente. Eu criei uma imagem de uma prisão e nessa prisão eu colocava as imagens dos carrascos da minha família. Todos os dias eu imaginaria entrar na prisão e esquartejar, despedaçar e espancar os assassinos assim como eles tinham feito com minha família. Eu os torturava até eles confessarem que o que tinham feito erra horrivelmente errado. Mas nada disso era realidade—era apenas uma ilusão. Na verdade, eu tinha trancafiado minha própria alma na escuridão e não conseguir abrir a porta da cela. Eu precisava de um libertador.
Perdão e Reconciliação
No fim das contas, minha habilidade de perdoar veio à luz a partir de uma consciência da graça de Deus em minha vida. Deus tinha me perdoado sem nenhuma iniciativa da minha parte. Ele enviara Seu Filho para morrer por meus pecados, algo que eu não merecia. Cristo ensinou que devemos “amar nossos inimigos, fazer o bem aos que nos odeiam, abençoar os que nos amaldiçoam e orar por aqueles que nos maltratam” (Lc 6.27-28). Eu percebi que perdoar os carrascos da minha família era a única maneira de abrir espaço para que o amor de Deus me purificasse e o único caminho para O louvar e glorificar com alegria.
Para tornar minha missão de perdão completa, eu decidi viajar rumo à reconciliação com com os algozes da minha família. Pedi que os pastores Narath e Sokcheat viajassem comigo, pois eu carecia desesperadamente do seu apoio emocional e moral. Em meu coração e aos olhos de Deus, eu já tinha perdoado os assassinos da minha família, mas encontrá-los face a face era outra história. A vila ficava bem longe da minha cidade, e a maioria dos seus residentes eram antigos soldados do Khmer Vermelho. Eu percebi que eles, como eu, eram cambojanos perdidos que precisavam ouvir a mensagem da salvação e do amor de Jesus Cristo tanto quanto eu tinha sido. Quando chegamos à vila, descobri que quatro dos seis assassinos tinham sido mortos na guerra e apenas dois desses homens tinham sobrevivido. Um ainda vivia na vila e outro tinha se mudado.
Os pastores e eu nos reunimos por três horas com o carrasco de minha família. Eu lhe dei um karma (um lenço cambojano) como um símbolo do meu perdão para com ele, minha camisa como um símbolo do meu amor por ele, e um Novo Testamento como um símbolo de minha bênção sobre ele. Ao partirmos, eu lhe dei um abraços e lhe disse, “Pela graça de Deus, vá em paz.
Que Deus o abençoe e que o espírito do medo se afaste de você”.
Numa viagem subseqüente, pude encontrar-me com a segunda pessoa. Visto que é muito incomum para o povo cambojano dizer “Sinto muito”, eu não esperava um pedido de desculpas. Mas, diferente do primeiro, este homem disse, “Eu sinto absoluto arrependimento por tudo que eu fiz com sua família. Por favor perdoe esse terrível mal”. Essas palavras tocaram profundamente o meu coração. Pude dizer para ele que Deus é cheio de compaixão, que ele nos ensina a amar e não odiar, a perdoar e não buscar vingança—e que é o poder do amor de Deus que fizera derreter o ódio dentro da minha alma.
O perdão é uma descoberta muito pessoal. Essa descoberta me levou por uma estrada dolorosa, mas além da dor, ajudou-me a ver a beleza da vida. Ajudou-me a olhar para minhas cicatrizes e saber que fui curado. Ao decidir obedecer a Deus, eu ceifei uma colheita de paz e alegrias, assim como depois de uma chuva forte, vemos a beleza do arco-íris.
Dr. Sokreaksa S. Himm
trabalha como um parceiro com a Fundação Ratanak, uma organização sem fins lucrativos dedicada a levar auxílio e esperança para o povo Khmer do Camboja. Dr. Himm voltou à vila da sua infância e ajudou as pessoas a construir poços e uma escola. Ele conta a história de sua vida em dois livros: After the Heavy Rain e Tears of My Soul, publicados por Monarch Books, Kregel Publications. Ele e sua esposa, Phaly, têm dois filhos, Philos e Sophia.
www.opv.org.br
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