O Deus da justiça - Entrevista

Jung Mo Sung provoca: “Quem tem o poder de definir o que é heresia, se Cristo também foi considerado herético?”


Quem estranhar a presença de um pensador católico em CRISTIANISMO HOJE, uma publicação de orientação evangélica, não deve conhecer Jung Mo Sung. Portanto, uma apresentação é mais que oportuna. Sung, sul-coreano de nascimento, tem 55 anos, mas está radicado no Brasil desde 1966, tendo se naturalizado no país onde vive com a mulher e os dois filhos. Intelectual cristão com predicados acadêmicos que o projetam internacionalmente – é doutor em Ciências da Religião e pós-doutor em Educação –, ele é um homem cujas opiniões e posturas transcendem a esfera confessional. Teólogo liberal, Sung é autor de 17 livros, palestrante requisitado e especialista em temas econômicos, que aborda sob a ótica da fé cristã. Sim, os dois assuntos têm muito em comum, com ele demonstra em obras como Teologia e economia: Repensando a teologia da libertação e utopias (Fonte Editorial), Deus numa economia sem coração e se Deus existe, por que há pobreza (Paulinas). Para Sung, Cristo veio ao mundo também para trazer boa nova aos pobres – a de que eles podem ter uma vida digna. Por isso, não se conforma com abordagens cristãs que situam as desigualdades sociais como fruto da vontade divina: “É mentira colocar sobre os ombros do Senhor a responsabilidade pela pobreza e pelas injustiças, e não sobre o pecado. Deus nos criou como seres livres, e como tais, somos produtores da pobreza e da injustiça.”
Jung Mo Sung tem bom trânsito em diversos círculos protestantes. É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião e diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo, por exemplo. Além disso, tem sido interlocutor frequente de líderes evangélicos, tanto pentecostais como de linha tradicional. Por isso mesmo, tem um conhecimento profundo do segmento evangélico, presente em sua reflexão teológica e, evidentemente, no pensamento crítico a certos valores que andam em alta. “Identificar as bênçãos com a riqueza é critério mundano”, dispara. “É por isso que pastores e bispos se vangloriam da sua riqueza e da posse de bens de luxo, como aviões particulares”.
CRISTIANISMO HOJE – O senhor é conhecido por seus vários trabalhos na área de economia, onde aborda temas como mercado e pobreza sob ótica cristã. Uma pergunta sempre surge quando se trata dessa relação – se Deus existe, por que há miséria e injustiças sociais?
JUNG MO SUNG – O tema da economia tem sido um dos objetos fundamentais da minha reflexão teológica porque Deus é Deus da vida e Cristo veio anunciar a boa nova aos pobres – a boa notícia de que também os pobres têm direito a uma vida digna. E a vida não é possível sem bens materiais, que fazem parte da economia. Jesus veio nos mostrar a verdadeira face de Deus, contra a mentira que coloca sobre os ombros do Senhor a responsabilidade pela pobreza e pelas injustiças, que são frutos do pecado. Deus nos criou como seres livres, e como tais, somos produtores da pobreza e da injustiça.
Um de seus livros é Teologia e economia: Repensando a teologia da libertação e utopias. Passada a divisão ideológica do mundo entre esquerda e direita, qual o legado da teologia da libertação, hoje?
Em primeiro lugar, o que acabou foi a chamada Guerra Fria entre o bloco capitalista e o comunista. Mas as injustiças e graves desigualdades sociais ainda continuam no mundo. Norberto Bobbio, um importante teórico liberal, disse que ainda hoje faz sentido falar em direita e esquerda. Para ele, ser da direita é crer que as diferenças sociais são naturais e promovem progresso econômico – e, portanto, não devem ser combatidas. Ser da esquerda é crer que, mesmo que diferenças sociais não possam ser extintas, é preciso lutar para diminuí-las, pois causam grave injustiça social. Eu concordo e me sinto, como ele, alguém da esquerda, isto é, luto para diminuir desigualdades e injustiças sociais. Penso que a contribuição mais importante da teologia da libertação – não só para a Igreja Católica, mas também para muitos outros grupos religiosos, incluindo as correntes não-cristãs que foram influenciadas por ela –, foi a de mostrar que Deus não é indiferente aos sofrimentos dos pobres e dos injustiçados. A consequência social dessa visão teológica é que o cristianismo ainda tem ou pode ter um papel social importante no mundo.
O que o senhor diria sobre a influência desse movimento sobre os evangélicos?
A teologia da libertação não nasceu católica. Na verdade, entre os primeiros autores latinoamericanos a tratarem da teologia nessa perspectiva estão presentes teólogos protestantes, como Richard Shaull, Miguez Bonino e Rubem Alves. Podemos dizer que a teologia da libertação nasceu ecumênica e influenciou diversos setores das igrejas protestantes evangélicas e da Igreja Católica. Com passar do tempo, ela se tornou mais católica, sem deixar de ter entre o seu meio teólogos protestantes. Mesmo setores que não aderiram àquela teologia foram influenciados na medida em que foram “pressionados” a debater sobre problemas sociais a partir da fé cristã.
A opção preferencial pelos pobres, expressa pela Igreja Católica nos anos 1960, nunca encontrou, ao menos formalmente, eco na Igreja Evangélica. Na sua opinião, o que difere os dois grupos no trato da questão e por que os evangélicos têm certo pudor de assumir essa causa como prioritária na sua prática cristã?
Eu penso que setores evangélicos ainda são muito marcados pela divisão entre a pregação da Palavra e a ação social. Para muitos grupos, a prioridade das Escrituras ficou reduzida ao anúncio sem, podemos dizer, uma ação concreta que desse consistência à afirmação de que Jesus é o Senhor. A teologia da missão integral tentou superar essa dicotomia fazendo uma equação simples – a Palavra de Deus mais a ação social. Enquanto isso, a “opção pelos pobres” feita pelos adeptos da teologia da libertação significa que a forma concreta de anunciar que Jesus é o Senhor em um mundo marcado por tanta injustiça social é optar pelos pobres. Em outras palavras, os senhores do mundo oprimem os pobres e os consideram como sub-humanos; por isso, anunciar o senhorio de Jesus ou de Deus seria afirmar que pobres também são seres amados pelo Senhor, com direito a uma vida digna.
Quais são, em sua opinião, os pontos de afinidade e diálogo entre a teologia da libertação e a teologia da missão integral?
O ponto de afinidade mais importante, na minha opinião, é a convicção, expressa por ambas as teologias, de que Deus não é indiferente às injustiças e aos sofrimentos dos pobres no mundo. Portanto, se Deus não é indiferente, ser indiferente ou insensível aos sofrimentos das pessoas pobres ou vulneráveis não é atitude compatível com o cristianismo. Por isso, as duas teologias levam a sério o chamado de Jesus à conversão, a sair do mundo do pecado, da injustiça e da mentira em direção ao Reino de Deus. Outra afinidade importante se dá em torno da teologia da encarnação. Deus se esvaziou do seu poder divino e se encarnou no meio da humanidade para que também nós vivêssemos a nossa missão no meio do mundo, sem a pretensão de um poder sobrenatural para resolver os problemas. Essa é a convicção de que não se pode viver a fé cristã sem se encarnar no mundo, na luta contra as injustiças e mentiras que matam! Em torno desses dois pontos teológicos em comum é possível desenvolver diálogos importantes entre a teologia da libertação e a teologia da missão integral.
A teologia da missão integral, tão valorizada em segmentos protestantes históricos e denominações tradicionais, sequer é mencionada no ambiente neopentecostal, onde a ênfase é mais no assistencialismo de ocasião. Caso essa escola de pensamento missional fosse majoritária na Igreja Evangélica como um todo, haveria espaço para o neopentecostalismo e para sua ação nas classes mais pobres?
As igrejas neopentecostais partem de uma opção distinta em relação à teologia da missão integral. Enquanto que ela e a teologia da libertação criticam o mundo atual pelas suas injustiças, os principais expoentes do neopentecostalismo e da teologia da prosperidade não o fazem. Na verdade, eles aceitam os valores e a hierarquia social do mundo e propõem levar os cristãos ao topo dessa hierarquia. Por isso, as bênçãos são identificadas com a riqueza, que é critério essencial do mundo; e pastores e bispos se vangloriam da sua riqueza da posse de bens de luxo, como aviões particulares. Mesmo que a missão integral fosse majoritária nos segmentos históricos e tradicionais do protestantismo, o neopentecostalismo e teologia da prosperidade teria seu espaço. Afinal, muitos querem subir a hierarquia social, não necessariamente encontrar Deus que se manifestou em Jesus.
 
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