Reconhecendo os limites

A meia-idade é o período no qual a fé colide com a
dura realidade e somos, afinal, confrontados com a ideia de nossa finitude.
O médico oncologista conversa com um homem de quarenta e poucos anos com um tumor cerebral inoperável. O paciente já tinha um histórico de câncer com o qual conviveu de maneira assintomática durante anos, mas agora se deparava com o crescimento da lesão encefálica que, provavelmente, tiraria sua vida. “Sei que você precisa falar comigo sobre minhas opções”, diz o paciente ao especialista. Mostra-se resignado por ter de enfrentar o penoso tratamento de quimioterapia e seus desconfortos, se assim lhe fosse recomendado. Mas o que afirma em seguida é que revela seu estado de espírito. Após compartilhar com o médico sobre sua fé em Cristo, o homem confessa o que passou a ser seu maior projeto neste mundo: “O que mais quero, doutor, é olhar o pôr-do-sol e desfrutar da minha família no tempo que ainda me resta.”
Minutos depois, entra outra paciente no consultório. É uma senhora na faixa dos 80 anos que acabara de receber a notícia da metástase de seu câncer. A doença, até então restrita a um órgão, espalhara-se por outras partes do corpo. Para a medicina, não havia mais o que fazer, a não ser ministrar tratamentos paliativos para mitigar suas dores até a morte. Ao contrário daquele homem – e, numa atitude até certo ponto inesperada numa anciã –, a mulher demonstra extrema ansiedade e não consegue esconder o pânico diante do diagnóstico. A idade, é claro, não está necessariamente relacionada ao pavor ou à calma perante a notícia da iminência do fim da história de uma vida. Mas é curioso como um paciente de meia-idade encara um diagnóstico fatal com serenidade, enquanto que uma idosa, que já viveu muito mais, desespera-se diante da mesma perspectiva.
O poeta W.S. Merwin enfatizou que, todos os anos, passamos despercebidos pelo aniversário de nossa morte. Que nível de fé na bondade de Deus é necessário para suportar emocionalmente uma notícia sombria? Que tipo de maturidade espiritual pode fazer a diferença entre a serena confiança e o desespero incontrolável? Aquele paciente que queria viver intensamente seus últimos meses ao lado de quem amava demonstrou ter uma realidade de fé que ia além da intelectualidade, fundamentada nas verdades bíblicas. Para muitos, o despertar da espiritualidade coincide com sua adolescência ou juventude. É a fase da vida na qual tudo é novo e cheio de potencial para transformar o mundo para Cristo. É a fase das viagens missionárias, das decisões pelo serviço a Deus e de longas conversas idealistas sobre como viver uma vida com mais significado. Muito do que disse João da Cruz, monge espanhol do século 16, sobre o que chamou de “anos iniciais da fé”, corresponde aos primeiros marcos da vida: o colégio, a universidade, casamento e filhos.
Contudo, algum tempo após os 30 anos de idade, a curva da aprendizagem não é tão evidente e as marcas do crescimento espiritual são menos visíveis. A linguagem da fé não é tão nova, assim como as pessoas também já não o são. Após muitos anos de atividades tão diversas como cantar no coral, participar ativamente de estudos bíblicos, visitar penitenciárias e trocar fraldas em berçários de igrejas, a vida religiosa se torna confortável, como aquela amizade construída ao longo de décadas entre um casal de idosos. O passar dos anos nos coloca diante de necessidades outras. É preciso administrar e investir na carreira, desdobrar-se em tempo para atender demandas pessoais, aprovisionar recursos para o futuro – e, em meio a sofrimentos e situações não planejados, parece que os trilhos da vida vão se desgastando e perdendo a nitidez diante de um crescente deserto.

IDEIA DE FINITUDE
A maturidade é repleta de correções de rota e esperança de reconstrução. Então, qual a medida de nossa vida em Cristo, uma vez que caminhamos por rotas diferentes e quase sempre chegamos a lugares totalmente diversos daqueles que, no início, tínhamos a certeza de que Deus havia planejado para nós? Um dos conceitos teológicos mais misteriosos – o kenosis de Cristo – adquire novos significados conforme avançamos na jornada da vida. Kenosis, do grego, pode ser traduzido por “esvaziamento”, e é a tentativa teológica de explicar a encarnação do Verbo, quando Deus tornou-se humano na pessoa de Jesus. Paulo usa a palavra em um trecho crucial de sua carta aos Filipenses: “Embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo”. O que Cristo fez voluntariamente apresenta um modelo diferente de crescimento espiritual, enquanto, involuntariamente, deparamo-nos com os limites em nossa própria história.
Quem pode realmente dizer quando começa a meia-idade? Ela seria um momento exato, determinado por mera classificação etária? Uma mudança de mentalidade, construída a partir das experiências e sentimentos acumulados até ali? Ou, simplesmente, um despertar para a realidade de que mais da metade da vida já se passou e resta menos tempo para fazer aquilo que consideramos certo? Por certo, é uma época de realizações, quando muitos contemplam a família formada e os filhos bem encaminhados, experimentam momentos pessoais marcantes e têm a satisfação de haver construído relacionamentos sólidos. Uma espécie de tempo de colheita, por assim dizer. Por outro lado, é a fase da vida na qual muitas sombras se apresentam na forma de decepções, cansaço, tristeza, problemas de saúde, funerais de parentes e amigos. São os anos nos quais a fé colide com a dura realidade e somos, afinal, confrontados com a ideia de nossa finitude.
Esses “limites acumulados”, como os descreveu o franciscano Richard Rohr, permitem que nos abalemos emocionalmente e sintamos um pouco do que Cristo experimentou como ser humano. Quando Deus tomou a forma de homem, foi confrontado com nossas limitações, apesar de ter vivido em níveis bem diferentes este sofrimento, se comparado às nossas dificuldades psicológicas e físicas. Sua decisão voluntária demonstra autoconhecimento e prudência, um modelo para como devemos nos portar frente aos limites da vida. No livro O castelo interior, Teresa de Ávila, escritora espiritual do século 16, aproxima a palavraautoconhecimentodo termo humildade. Ela descreve o autoconhecimento como nossa primeira questão na progressão para o conhecimento total de Deus: “Não importa quão alto o estado da alma possa estar, o autoconhecimento é essencial (...) A humildade deve estar sempre fazendo seu trabalho, como uma abelha faz o mel: sem a humildade, tudo está perdido.”
O autoconhecimento e sua visível parceira, a humildade, não são uma aquisição única, como a conversão ou um sentimento urgente de chamado que marca os primeiros anos da fé. É uma progressão lenta e agonizante que a alma faz na direção de Deus. Nos nossos primeiros anos de fé, certamente não imaginávamos o tipo de pessoas que nos tornaríamos. Todavia, mesmo com todas as promessas de reconstruções na meia-idade – os segundos (ou terceiros) casamentos, o contato com novas famílias, novas carreiras e jornadas radicais de serviço cristão –, ainda é final de verão. Não é primavera. Conforme nossa história caminha, continuamos a perder qualquer tipo de status ou poder que construímos. A marca do kenosis inclui o cuidado de parar de brigar com os limites da vida. Não se trata de uma concessão passiva ao tempo, mas sim, de uma disciplina ativa, que nos permite viver de maneira mais livre no nosso chamado em vida, buscando o que Deus tem para nós e fazendo isso com honestidade, energia e alegria. Talvez tenha sido isso que Thomas Merton quis dizer com “o eu imaginário”: a ficção que demonstramos a respeito de quem somos quando distorcemos nossa percepção da realidade. Com a maturidade, podemos enxergar que a razão da humildade está interligada ao autoconhecimento.
Por que não percebemos isto antes? Talvez porque a humildade e o sentimento de estupidez são relacionados, embora não equivalentes. A humildade da identidade verdadeira é escolhida – portanto, um componente voluntário de nossa trajetória –, e não uma consequência. A vida se torna, como escreveu Merton, “uma série de escolhas entre a ficção do falso eu, que alimentamos com nossas ilusões apaixonadas e apetite egoísta, e nossa amável permissão à pura e misericordiosa graça de Deus”. Tal marca não é facilmente adquirida, especialmente para aqueles que desenvolveram durante a vida o consumismo e acumularam status. Mas as marcas da fé não costumam aparecer totalmente desenvolvidas; elas emergem como a larva que, depois de anos amadurecendo no fundo do rio, faz seu trajeto para a superfície na forma adulta.
Estes sinais não são, necessariamente, nosso destino final na caminhada com Cristo. Mas a busca da humildade é um importante ponto de partida na meia-idade, condição na qual faremos bem se mergulharmos mais uma vez nas palavras de Thomas Merton: “Os rios de tranquilidade e paz que fluem de Deus para todo o universo e atraem tudo de volta a Deus.”

Dave L. Goetz  é autor de Morte no subúrbio, e presidente da CZ Strategy, empresa de consultoria em marketing em Wheaton (EUA)

Cristianismo Hoje

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