Divisões perigosas

Divisões perigosasEcumenismo é a palavra que descreve o movimento histórico para a unidade da Igreja global. Normalmente, ela é considerada um exercício acadêmico entediante, uma espécie de acordo doutrinal ou de uma batalha do tipo"o vencedor leva tudo" na busca para estabelecer uma superigreja monolítica. Contudo, os cristãos, em geral, erram ao desprezar tal palavra. A busca pela unidade da Igreja é um selvagem, maravilhoso e estranho ato de penitência para a negligência dos cristãos, muitas vezes cruel, em face da existência da palavra "uma" em João 17 e no Credo de Niceia. Nós confessamos que o Espírito Santo chamou apenas uma Igreja. Mas quase todas as provas apontam em um sentido oposto. O que isto significa? E como a Igreja de Cristo e os cristãos devem responder?
Ao longo da história do Cristianismo, os cristãos criaram maneiras engenhosas para explicar por que a Igreja pode ser dividida em tantas facções. A mais fácil, é claro, é dizer que as pessoas que estão fora de um determinado círculo não fazem parte dela. Foi assim que Cipriano, o pai da igreja, lidou com isso: Por definição, a Igreja é uma, indivisível; portanto, se aparentar haver "divisões", a verdade é que se trata apenas de uma impostora ímpia atuando contra a verdadeira Igreja. E, fora da Igreja, não existe salvação. Porém, essa abordagem funciona apenas se o isolamento for estritamente mantido. O que acontece quando cristãos de uma "igreja" conhecem cristãos de outra "igreja" e são surpreendidos ao encontrarem ali fé, piedade e boas obras verdadeiras?
É aí que entra a noção mais generosa, e também problemática, da "igreja invisível". Ela é geralmente baseada na parábola de Jesus sobre o joio e o trigo. A ideia básica é que a santidade descreve apenas indivíduos, e não instituições. Todos sabemos que nossa igreja está cheia de cristãos que não são autênticos. Enquanto isso, descobrimos que a igreja deles possui alguns autênticos. Portanto, a única Igreja verdadeira é invisível, conhecida apenas por Deus. Comunidades visíveis e históricas são apenas acessórios para a verdadeira Igreja.
Estas podem parecer soluções opostas para o problema da unidade: uma maximiza a importância das estruturas da igreja, enquanto a outra minimiza. No entanto, ambas representam uma recusa em levar a história da Igreja a sério. E isso é um problema. Se existe alguma doutrina que precisa levar em consideração a história real para ser significativa, é a eclesiologia, a doutrina da Igreja. Mas ambas as abordagens ignoram realidades históricas inconvenientes. Definir uma igreja específica como a única igreja ignora a capacidade do Espírito Santo de ir além dos limites e das estruturas criadas pelos homens. Mas definir Igreja como indivíduos autenticamente cristãos, onde quer que estejam, reduz as divisões estruturais a questões de indiferença quando, na verdade, elas promovem hostilidades entre aqueles que deveriam estar chamando uns aos outros de irmãos. As prolongadas guerras na Europa dos séculos 16 e 17 foram prova suficiente de que a noção de uma "igreja invisível" não conseguiu impedir que os cristãos matassem uns aos outros.
Vergonhosamente, os cristãos não confrontaram teologicamente sua violência interna, sendo necessário que pessoas de fora lhes chamassem a atenção. Foi a experiência de competir no campo missionário que expôs a hipocrisia (por que não dizer heresia?) de facções rivais, todas alegando serem as portadoras supremas da verdade e do amor de Cristo. Potenciais convertidos não se impressionavam, e os missionários sabiam disso. O resultado disso, na famosa conferência missionária de Edimburgo de 1910, foi o nascimento do movimento ecumênico. A questão principal não era aumentar uma doutrina subdesenvolvida ou mesmo reduzir o ódio entre os cristãos: tratava-se de dar um testemunho confiável para aqueles que ainda não criam em Cristo. "Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros", disse Jesus. (João 13.35). Mas, e se os discípulos não amarem uns aos outros, e até mesmo construírem barreiras para continuar assim? A desunião é um escândalo para o Evangelho e pedra de tropeço para a fé.
ORAÇÃO DE CRISTO
Na noite de sua prisão, Jesus orou três vezes ao Pai em nome de seus discípulos nestes termos: "Que eles sejam um, como nós somos um" (João 17.11, 21-22). O desejo de defender essa oração tem sido a força motriz do movimento ecumênico. Mas o caminho percorrido não tem sido óbvio. A unidade da Igreja se revelou um paradoxo como os outros grandes paradoxos da fé: a questão entre a humanidade e a divindade de Cristo, a salvação imediata ou não imediata, a realidade pecaminosa em contraste com a santidade do crente etc. A Igreja é dividida, sim – mas, de alguma maneira, ainda é uma só.
Não há uma única proposta de unidade que seja a vencedora. Uma das dificuldades é a tendência que cada comunidade cristã tem de criar um modelo que reflita seu próprio conceito preexistente de igreja, que é, por sua vez, baseado nas peculiaridades de sua história. É algo óbvio, atualmente, que o catolicismo absorveu o modelo do Império Romano e que a Ortodoxia Oriental assumiu a firme aliança entre Estado e Igreja em suas áreas de origem, da mesma forma que protestantes da era da Reforma abraçaram uma crescente separação entre as autoridades sagrada e secular.
O mesmo padrão continua hoje. Evangélicos e pentecostais, em sua propensão a se dividir e subdividir, espelham o mercado capitalista, oferecendo um produto para cada gosto. Protestantes tradicionais seguem um modelo mais institucional, em que cada congregação deve ser um posto de uma denominação central. Já os pentecostais são mais centralizados, com uma igreja-sede controlando muitas filiais. A garantia da unidade através das redes de congregações e de ministérios eclesiásticos é uma reprodução da interconectividade da internet. A liberdade para a migração de uma comunidade cristã para outra reflete uma economia e uma sociedade baseadas nas preferências individuais e oportunidades.
Nada disso significa que esses modelos de igreja sejam necessariamente errados. Mas mostra, contudo, que as igrejas imitam o tipo de unidade que veem ao seu redor. Vale a pena se perguntar se um modelo verdadeiramente ecumênico de unidade da Igreja – em oposição ao modelo denominacional ou secular – sequer existe. Apesar de não terem resolvido o problema da desunião, os esforços ecumênicos têm feito diferença. A solidariedade cristã (de todas as denominações) desempenhou um papel vital para o fim do comunismo no leste europeu e para o fim do apartheid na África do Sul. O ecumenismo tem promovido projetos humanitários conjuntos entre cristãos que antes não confiariam seu dinheiro uns aos outros. E, através de diálogo cuidadoso, ele descobriu surpreendentes semelhanças entre os cristãos – muito mais do que uma ênfase nas questões conflituosas entre eles. E, melhor, o ecumenismo busca unir questões de doutrina, administração da igreja e trabalho missionário.
DE VOLTA AO COMEÇO
Seria tentador culpar uma determinada pessoa ou partido pela divisão da Igreja, isto é, identificar alguém que teria interrompido a antiga harmonia com ensinamentos falsos ou mau comportamento. Mas essa desunião, pasmem alguns, teve início nas páginas das Escrituras. A dissensão dentro da Igreja começou cedo. Basta lembrar da ruptura entre Paulo e Barnabás; no conflito entre Pedro e Paulo; nas práticas de comunhão injustas em Corinto e nos falsos mestres que fizeram com que fiéis se desviassem. Paulo exortava incessantemente seus discípulos a amarem uns aos outros, assim como João. Eles não precisariam se repetir se a unidade estivesse acontecendo natural e automaticamente.
Existem muitas razões para conflito interno, algumas com origem no pecado, outras legítimas – embora quase todo mundo considere suas razões legítimas e apenas minimamente pecaminosas. Paulo, no entanto, faz uma importante distinção: apesar de reconhecer que havia entre aqueles cristãos heresias, impedindo que os sinceros se manifestassem em seu meio (I Coríntios 11.19), ele diz também: "Que não haja entre vós dissensões". A palavra grega usada é schismata, que deu origem à palavra "divisão". E a razão é que "todos nós fomos batizados em um Espírito, formando um corpo, quer judeus, quer gregos, quer servos, quer livres, e todos temos bebido de um Espírito" (I Coríntios 12.13).
A igreja se torna dividida e ideológica quando é separada do Evangelho que a trouxe à existência. E, explicado de forma mais simples e radical, o Evangelho é isso: "Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores" (Romanos 5.8). Deus veio atrás de pecadores que não queriam nada com o Criador, reunindo-os em uma comunidade de inimigos e transformando-os em uma família, uma irmandade – em uma Igreja. A Igreja é o epicentro da reconciliação dos inimigos no mundo, a começar pela mais improvável de todas – aquela entre Deus e os homens –, e parte daí para reparar todas as formas de desavença humana.
Esse tipo de Evangelho tem consequências sociais incríveis. No Novo Testamento, ele uniu gregos e gentios. Depois de dez capítulos somente narrando somente missões judaicas, eis que Pedro é subitamente confrontado, primeiro por uma visão e, em seguida, pelo devoto gentio Cornélio, que se torna crente em Cristo tão rapidamente que o apóstolo não consegue nem terminar seu sermão. Os irmãos em Jerusalém não ficaram muito felizes ao saber que os "impuros" haviam sido batizados. Pedro, no entanto, respondeu: "Se Deus lhes deu o mesmo dom que a nós, quando havemos crido no Senhor Jesus Cristo, quem era então eu, para que pudesse resistir a Deus?" (Atos 11.17). Isso silenciou as objeções daqueles irmãos, permitindo que sua descrença desse lugar a uma fé ainda maior e mais ousada: "E, ouvindo estas coisas, apaziguaram-se, e glorificaram a Deus, dizendo: Na verdade até aos gentios deu Deus o arrependimento para a vida" (Atos 11.18).
As comunidades paulinas, mais tarde, vieram a entender a relação intrínseca entre o Evangelho e a Igreja: "Porque ele [Cristo] é a nossa paz, o qual de ambos os povos fez um; e, derrubando a parede de separação que estava no meio" (Efésios 2.14). Ora, uma mera unidade invisível não faria justiça à cruz. Seus resultados tiveram de ser mostrados na comunhão real, visível e vivida entre velhos inimigos.
Há uma séria objeção a tudo isso e ao ecumenismo em si. E se inimigos de Cristo tiverem entrado pelos portões? Pelo relato bíblico, vemos que os falsos mestres eram condenados e mandados embora pelos apóstolos. Não deveríamos fazer o mesmo? A divisão não é preferível em alguns casos? A questão finalmente se resume a como nós vemos o "inimigo" que o falso mestre se tornou. Seria o herege um inimigo como Satanás, que deve ser lançado no lago de fogo e atormentado eternamente? Ou seria como uma das ovelhas perdidas, por quem Cristo não mede esforços para resgatar – ou seja, o ímpio por quem ele morreu? A verdade é que nenhum herege se livrará de sua heresia se for evitado e rejeitado. E sempre há a possibilidade de que, dentro da heresia, exista uma verdade que não foi bem compreendida. O teólogo luterano Arthur Carl Piepkorn gostava de dizer que as heresias eram Bußpredigten, que significava "sermões de arrependimento": elas seriam repreensões à Igreja tradicional por ignorar algum aspecto da verdade e do amor cristão.
A verdade é que não desistir dos inimigos e hereges não é para os fracos de espírito. Essa atitude significa perdoar setenta vezes sete vezes. Significa considerar humildemente o outro superior a si mesmo. Significa abençoar, e não amaldiçoar, aqueles que nos perseguem. Em suma, significa fazer pelos outros o que Cristo fez por nós. Muitos ainda duvidam da importância da unidade. Muitas vezes, isso se deve às falsas percepções do que a unidade pode realmente trazer – ou, também devido a uma proteção pecaminosa da cristandade pessoal. Mas a recusa ao esforço pela unidade é como dizer: "Por que se preocupar em ser santo, quando Deus já nos declarou justificados?".
O Senhor já nos deu a salvação. Nós podemos viver em contradição a essa graça, ou podemos ser transformados por ela em pessoas santas. Da mesma forma, Deus chamou uma igreja para ser o corpo de Cristo; então, nós podemos viver em contradição a essa única Igreja ou podemos nos reconciliar e tornar visível a nossa unidade em Cristo. No fim das contas, não se trata do que nós consideramos ser melhor para o mundo ou para o avanço do Cristianismo. É simplesmente uma questão de vivermos a oração de Jesus por nós: "Que eles sejam um".
Sarah Hinlicky Wilson é professora assistente de pesquisas no Instituto de Pesquisa Ecumênica em Strasbourg, França, e editora do Fórum Luterano.

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