Noé e as 20.000 léguas submarinas


A exibição do filme Noé causou certa agitação no meio evangélico em geral.
Primeiro, foi uma expectativa nervosa a respeito do que seria visto no filme. Raios e trovões anunciavam a aproximação de uma tempestade. Havia fortes suspeitas de que Noé não contava direito a saga bíblica.

Quando o aguaceiro afinal desabou, veio a triste confirmação: o filme não conta a história do patriarca a quem Deus demonstrou graça, do julgamento divino sobre a criação e nem da aliança feita com ela, tendo Noé como mediador. A história do filme é outra.

Essa frustração, porém, não se justifica. Afirmar que "o filme não segue o livro" é chover no molhado. Nenhum filme segue o livro em que se baseia seu roteiro. Eu ainda era menino quando li O último dos moicanos, de James Fenimore Cooper, e ao ver o filme muitos anos mais tarde fiquei comparando as enormes diferenças. O mesmo se deu com os romances Os três mosqueteiros, O conde de Montecristo (Alexandre Dumas), Germinal (Émile Zola), Guerra e paz (Leon Tolstói), Doutor Jivago (Boris Pasternak) e A invenção de Hugo Cabret (Brian Selznick) e vários outros. As transposições variaram mais ou menos, mas variaram sempre. Isso vai acontecer com qualquer outro texto adaptado, ficção ou história. Todos eles viraram outra coisa quando transpostos para a tela. Ou alguém acha mesmo que Rose e Jack Dawson se apaixonaram enquanto o Titanic de 1912 afundava?

"O livro é melhor", esnobam os amantes da literatura, e segue-se uma enxurrada de razões para apoiar sua opinião. Os que preferem filmes simplesmente evitam mergulhar no debate e vão se preparando para a próxima adaptação.

Nem por isso, porém, deixamos de torcer o nariz para Noé. Não se podia esperar mesmo que ele simplesmente recontasse a história bíblica, mas também não era necessário que os valores fossem invertidos. O filme Ben Hur (1959), com roteiro de Karl Tunberg e direção de William Wyler, adaptado da obra homônima do General Lew Wallace, não fez essas inversões.

Noé, tipicamente, exalta a autonomia humana diante do tirano criador, aliás, sem um pingo de criatividade porque, afinal, essa foi a fala e a bandeira de Satanás no Éden. No filme, o desfecho só não é mais trágico por causa da inerente bondade de Noé e de sua capacidade de fazer bons julgamentos, conforme aprendemos do discurso final da nora do patriarca.

Bem, agora eu é que posso ser acusado de chover no molhado (isso ainda vai virar um dilúvio!). A cosmovisão pós-moderna do diretor Darren Aronofsky não surpreende, razão por que ele navega longe das Escrituras. Também não é surpresa que os roteiristas Aronofsky e Ari Handel tenham usado óculos do século 21. Que outros óculos eles usariam?

Ver um filme "baseado" na Bíblia é coisa complicada para o crente. Quem vai ler a história do êxodo sem se lembrar de Charlton Heston depois de assistir Os Dez Mandamentos de Cecil B. DeMille (1956)?

Como, porém, não desejamos ser crentes que não pensam, evitaremos recomendar que não se veja Noé ou qualquer outra adaptação do texto bíblico. Nossos adolescentes e jovens têm de nadar de braçada na reflexão apologética. Não foi por concordar com o pensamento pagão que o apóstolo Paulo soube citar os poetas cretenses e, quanto a um assunto específico, dar-lhes razão.


Nota: Obra imortal do ficcionista francês Júlio Verne (1828-1905), adaptada para o cinema e dirigido por Richard Fleischer, com roteiro de Earl Felton (1954). Sua citação no título foi apenas um trocadilho que eu não pude evitar...



Casado com Sandra, é jornalista, pastor presbiteriano e editor da Cultura Cristã.
fonte: ULTIMATO

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