Entrevista com Ricardo Gondim

JORNAL EXTRA – Há alguns anos, o senhor concedeu uma entrevista polêmica para a revista Carta Capital, com opiniões diferentes do ‘mainstream’ gospel sobre temas como o casamento gay e a participação dos evangélicos na política. O que mudou em sua vida de lá para cá?

RICARDO GONDIM – Olhando para trás, hoje vejo que aquela minha entrevista para a Carta Capital era absolutamente pertinente. Eu dei a entrevista antes da decisão do Supremo Tribunal Federal de considerar constitucional o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Hoje, o que parecia uma polêmica é a lei do país. O que mudou, para mim, é [que hoje tenho] uma compreensão muito mais abrangente de que as peculiaridades humanas são diversas e muitas vezes se manifestam na sexualidade. As pessoas têm peculiaridades em seu comportamento sexual e precisam ser compreendidas não como estranhas, pervertidas, pecaminosas, mas apenas como peculiaridades, que não devem ser demonizadas ou vistas com reservas pela sociedade, mas acolhidas como características próprias dos indivíduos. Há quem goste de um certo tipo de comida, de pintura ou de música. Alguns têm uma libido desenvolvida para um certo tipo de comportamento sexual, o que inclui a sexualidade. Os critérios com os quais eu lido com a homossexualidade são os mesmos que eu uso para lidar com a heterossexualidade, que são relacionamentos que tenham compromisso, respeito ao outro, com categorias éticas de acolhimento e não de abuso. Se isso vale para o heterossexual, vale para o homossexual e vice-versa.

JORNAL EXTRA – A política no Brasil está problemática, respingando em evangélicos, a exemplo do ex-governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho. Como o senhor enxerga o papel do cristão na política?

RICARDO GONDIM – O [teólogo] Leonardo Boff diz que a Igreja é convocada a fazer Política com P maiúsculo e não a política com p minúsculo. A diferença é que a Política é a busca do que é justo, de uma sociedade em que a distribuição da riqueza seja feita com critérios humanos e não com a ganância. Essa é a política dos profetas do Antigo Testamento, que por vezes mostravam que o que Deus queria não era mais culto, mas sim que a justiça fluísse como ribeiro perene, como diz em Amós, capítulo 5. Todo cristão deve estar engajado com esta Política. A política com p minúsculo é a militância partidária pelo poder. A essa política, a Igreja deve se dirimir por duas razões. Primeira: o jogo da política é muitas vezes sórdido e a Igreja deve se colocar como uma reserva moral na sociedade. A segunda causa é que a política do varejo e da conquista do poder é fluida; um partido que hoje está ‘por cima’, amanhã pode estar ‘por baixo’. As ações programáticas de um partido mudam muito por conveniências.
Uma das grandes conquistas da Reforma Protestante foi a separação da Igreja e do Estado, ou seja, o Estado laico. Então, as ações do Estado não têm dependência da Igreja. E quando a Igreja sai da política, ao invés de ela se fragilizar, ela se fortalece. Assim como a Igreja não deve querer influenciar o Legislativo, o Judiciário e o Executivo, a Igreja não quer que nem o Legislativo, nem o Judiciário e nem o Executivo tenham ingerência dentro dela. Eu não quero que nenhum órgão em Brasília me diga o que devo ou não devo predicar, assim como não posso querer colocar a minha posição religiosa aos assuntos que dizem respeito ao país, à nação inteira.

JORNAL EXTRA – O sociólogo cristão Paul Freston já declarou que o excesso de pautas morais nos discursos dos políticos evangélicos é pela ausência de uma compreensão mais ampla da Economia, da Sociologia e do papel do Estado. O senhor concorda com essa avaliação?

RICARDO GONDIM – Concordo, mas dou um passo além. A pauta moralista não é apenas por ingenuidade. Nem toda ingenuidade é inocente. As ingenuidades, muitas vezes, são ideologicamente manipuladas. Então, não é por uma falta de compreensão da sociedade que eles caem na vala do moralismo, mas é porque é conveniente manter uma pauta moralista. É conveniente porque o moralismo joga suas âncoras no passado. Além de ser hipócrita, é conveniente para os populistas, pois o discurso é aparentemente sagrado e piedoso, mas está cumprindo a agenda reacionária do obscurantismo e do atraso. Para muita gente, o atraso é mais seguro do que se arriscar na complexidade das novas demandas sociais que o país apresenta. Além de ser uma ingenuidade, essa ingenuidade não é inocente, mas conveniente.

JORNAL EXTRA – Alguns líderes falam que o Ocidente está passando por um processo de paganização, e que por trás de pautas como o aborto e questões LGBT há raízes ocultistas e uma guerra contra o monoteísmo. O que o senhor pensa sobre isso?

RICARDO GONDIM – Eu discordo completamente. O teólogo espanhol Andres Torres Queiruga escreveu um livro fantástico, ‘Fim do Cristianismo Pré-moderno’. A questão é que muitas pessoas ainda pensam o mundo a partir de categorias medievais, primitivas. Um mundo povoado de anjos e demônios, animado por seres místicos que perambulam pela terra fazendo o mal. A Bíblia é um livro obviamente pré-moderno, escrito em um momento primitivo da história no qual acreditava-se que o Sol girava ao redor da Terra – por isso há o relato de Josué de que o Sol parou. A gente sabe hoje, pela astronomia, que o Sol não gira ao redor da Terra, mas é ao contrário. O que acontece é que hoje estamos com categorias modernas de pensamento. Sabe-se, por exemplo, que a seca no Nordeste ou um terremoto no Haiti não são frutos de uma maldição divina, mas são resultados de fenômenos como o aquecimento global, no primeiro caso, ou do movimento de placas tectônicas, no segundo caso. Sabemos que não há nada a ver com demônios, mas a visão evangélica é pré-moderna, medieval, de concepção do mundo e da vida ainda a partir das categorias do tempo em que a Bíblia foi escrita. A gente tem de atualizar, porque a mensagem da Bíblia não é para ser recortada do passado e transportar para o presente. Isso não faz sentido. É preciso atualizar. Uma das questões é a homossexualidade. Na época de Levítico, na época de Paulo, no mundo antigo, havia uma visão de que a homossexualidade era uma perversão, assim como o alcoolismo era visto como uma perversão. Hoje sabe-se que o alcoolismo é uma doença, segundo a Organização Mundial da Saúde. Nós temos de atualizar nosso discurso a partir da nossa compreensão da vida, do mundo. As ciências estão para nos ajudar a compreender a vida a partir de um outro prisma. Eu discordo desta visão, acho que isto é uma bobagem dos evangélicos, que tem o objetivo principal de produzir medo e paranoia de que tem demônios e uma conspiração satânica. Isso é bobagem, inocentismo e alienação da compreensão da vida e da mensagem do Evangelho.

JORNAL EXTRA – A alienação neopentecostal tem afastado as pessoas da Igreja?

RICARDO GONDIM – Claro! O mundo neopentecostal funciona mais ou menos na lógica das grandes loterias. Juntam milhões e milhões de pessoas jogando, enquanto duas ou três pessoas ganham. Contudo, essas duas ou três pessoas que ganham reforçam o que chamo de sistema de plausibilidade, ou seja, se nunca ninguém ganhasse ninguém jogava. Então, se alguém junta uma comunidade de 5 ou 6 mil pessoas e diz que naquela semana Deus fará alguém prosperar. Com Deus ou sem Deus, cinco ou seis pessoas vão dar certo em alguma coisa naquela semana. Então, essas pessoas reforçam o sistema de plausibilidade. O problema é que a lógica neopentecostal é uma geradora de desiludidos. O mesmo apelo que há para encher as igrejas há para empurrar pessoas para fora. Essas igrejas são, na verdade, produtoras de ateísmo. Quem tem o mínimo de bom senso e lucidez diante da vida verá que não há o menor sentido em um Deus premiar três pessoas entre cinco mil e pula fora desse barco. Além de gerar ateus, essas igrejas geram repugnância entre os formadores de opinião, que começam a colocar todo mundo na mesma vala. O cristão, o religioso, é visto como um tolo, que caiu na arapuca da mensagem neopentecostal.

JORNAL EXTRA – O senhor falou que a leitura da Bíblia deve ser atualizada. Porém, a própria Bíblia fala que o Evangelho é eterno. Como identificar o que é eterno e o que precisa ser atualizado na Bíblia?

RICARDO GONDIM – O que é eterno no Evangelho é o compromisso com a vida, com o amor, com a solidariedade, a compaixão e a prática da justiça. As questões sociais, obviamente, não são eternas, mas maleáveis. Se você for ler a Bíblia de maneira fundamentalista, verá a escravatura sendo legitimada. A escravidão é eterna? Não, não é! Mas a Bíblia legitima e fala até sobre como se deve tratar o escravo. A cultura judaica era extremamente misógina, as mulheres eram vistas como úteros ambulantes, sem valor nenhum. A valorização da mulher é um exercício muito lento, que começa em Jesus, no Evangelho. É preciso ter cuidado ao dizer que o Evangelho é eterno. A essência do Evangelho é que é eterna, os valores que o Evangelho transmite, a coragem existencial que o Evangelho nos provoca. As questões sociais do Evangelho, obviamente, não podem ser tratadas como eternas. E ninguém as trata assim, nem mesmo os fundamentalistas. E quem diz que assim age está sendo, no mínimo, hipócrita.

JORNAL EXTRA – Pesquisas mostram que é crescente o número de divórcios nas igrejas, enquanto a quantidade de casamentos homossexuais também tem sido elevada. Como o senhor enxerga essa dinâmica?


RICARDO GONDIM – O que eu entendo é que os homoafetivos, a vida inteira, tiveram de enfrentar uma sociedade heteronormativa. Então, sempre foram vistos sob suspeita. Por isso, eles precisaram criar nichos de sobrevivência, um entorno social onde são vistos sem suspeita, que eram guetos e boates marginalizados. De repente, começaram a reivindicar o que todo mundo quer (e acho legítima essa reivindicação): serem aceitos como pessoas normais. Porém, ao serem aceitos dessa forma, acaba o discurso que eles são promíscuos, sujos, pecadores. Então, uma das formas de comunicar ao mundo que os homossexuais não são pervertidos, promíscuos e sujos é dizer: “a gente quer ter família e casar, como todo mundo”. Por isso, hoje eles têm essa demanda maior do que os heterossexuais, que se divorciam com muito mais facilidade. Os homossexuais, que outrora tinham relacionamentos muito mais fluidos, agora têm uma demanda de estabelecerem relacionamentos permanentes. Vejo assim, como uma tensão dialética na sociedade. Daqui a 50 ou 60 anos, talvez, a taxa de divórcio entre heterossexuais e homossexuais seja muito parecida.

Jornal Extra de Pernambuco
Edição de dezembro de 2016

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