Gospel ou Secular? Uma divisão tola, porém perigosa

O debate entre música gospel e secular é uma velha dicotomia tola, porém perigosa. Ela é tola porque sua defesa é fraca, não se sustenta sem incorrer em seletividade e contradição. Veja você mesmo: quando muitos cristãos pensam em música fazem uso das categorias gospel e secular, mas não pensam assim quando o assunto são filmes, livros ou séries, por exemplo. Entretanto não nos enganemos, esta tolice não diminui sua periculosidade. Por trás desta dicotomia está a gênese de uma cultura de gueto e uma antiga ideia, que remete a uma característica do gnosticismo: o dualismo.

O problema tem nome

O dualismo é uma abstração, uma visão de mundo, que busca explicar a realidade a partir da relação conflituosa de princípios antagônicos, mas que estão em pé de igualdade. Para o dualista o mundo está dividido entre a luz e trevas, e este conflito está “pau a pau”. Logo nem Deus é mais forte que o diabo nem o contrário, o que vai de encontro a revelação da divindade conforme as Escrituras.
O Deus Triuno, o Deus que é Pai-Filho-Espírito Santo, o Deus bíblico possui vários atributos, dentre os quais alguns são comunicáveis aos homens e outros não. Dentre os não-comunicáveis estão sua transcendência, imanência e soberania.  Como um ser transcedente ele não se confunde com sua criação, pois está acima dela. Como imanente, embora não se confunda com a obra criada, Ele está presente nEla. Isto não é panteísmo, que afirma “Deus é tudo e tudo é Deus”, pois ‘estar presente’ é bem distinto de ‘ser tudo ou alguma coisa’. Como soberano, não há ninguém a quem responda ou obedeça, de modo que se encontra acima de tudo e de todos e não há nenhuma força igual ou que exerça qualquer influência sobre sua vontade.
Agora me diga, o que é o movimento gospel hoje senão um gueto cultural que depende do dualismo para se afirmar? Afinal este movimento dicotomiza a criação, ensinando que o cristão não pode consumir o que for secular, leia-se não-gospel, mas apenas gospel. Esta ideia fomenta todo um mercado religioso que muita das vezes não se preocupa em oferecer algo com qualidade artística, técnica e/ou bíblica, mas apenas produtos transvestidos de evangelho, mas que como diria Paulo “nega sua eficácia” (2 Timóteo 3.5). Desde modo temos música gospel, filme gospel, rede social gospel, moda gospel, forró universitário gospel, perfumaria gospel, baile gospel, dialeto gospel (evangeliquês), humor gospel e tudo quanto mamon pode tocar.
O que na verdade estes artefatos culturais de gueto estão dizendo é que a realidade está dividida e que nesta divisão um lado pertence a Deus e outro ao diabo. Isto é a velha heresia gnóstica, que nega a soberania absoluta de Deus sobre toda a realidade, pois entende que o mundo está dividido e que a soberania de Deus é limitada a uma parte da realidade criada enquanto o diabo ficou com a outra. Entretanto ao lermos as Escrituras aprendemos que “do Senhor é a terra, o mundo e tudo o que nele há” (Salmo 24.1). O Gênesis, especificamente, é claro em sua mensagem de que há um só Criador de todas as coisas e este é Deus.

Um mundo caído com sinais da graça

Alguém pode argumentar que embora Deus seja o criador de todas as coisas, com a queda do homem a criação foi corrompida e é verdade, no entanto esta corrupção não é plena, pois aprouve a Deus manifestar o que a teologia reformada chama de “graça comum”. Não é um outro tipo de graça pois só há uma graça, mas uma forma de compreender a ação de Deus na história. Neste caso a graça comum não se refere a salvação dos homens, mas ao que é bom, belo e verdadeiro. A graça comum não salva, mas abençoa. Ela se manifesta em todo humanidade, na verdade é ela que viabiliza o cumprimento do mandato cultural dado por Deus à humanidade.
O teólogo americano Wayne Gruden em sua teologia sistemática apresenta como esta graça de manifesta em várias esferas da vida: física, intelectual, moral, social, religiosa e criativa. Sobre esta última observe o que ele diz:
Deus distribuiu medidas significativas de capacidade em áreas artísticas e musicais, assim como em outras esferas nas quais a criatividade e a habilidade podem expressar-se, como praticar esportes, cozinhar, escrever, e assim por diante. Além disso, Deus nos dá a capacidade de apreciar a beleza em muitas áreas da vida. E nessa área, assim como na esfera física e intelectual, as bênçãos da graça comum são às vezes derramadas sobre os descrentes até mais abundantemente que sobre os crentes. Todavia, em todos os casos, ela é resultado da graça de Deus.
Deste modo podemos dizer que a graça comum não é uma abstração, mas a constatação de um fato. Sem ela o homem é incapaz de cumprir sua missão cultural de fomentar tecnologia, adquirir conhecimento, produzir arte, edificar sociedades, propor política etc. Além disso a realidade da graça comum vai de encontro com a “guetização” do evangelho, vai de encontro ao consumo meramente religioso, vai se encontro a qualquer crença que negue a beleza da criação. Não estou com isto dizendo que toda produção cultural é boa, afinal vivemos sobre os efeitos da queda. Mas que nem tudo é mau, que há elementos bons e isto não depende de um telosconfessional-religioso. Por exemplo, consideremos a vida de Abraham Kuyper, que foi pastor, primeiro-ministro da Holandês, jornalista, criador do partido politico reformado, da universidade livre de Amesterdan e soube cumprir cada um destes papéis para glória de Deus e o bem do seu povo. Por quê um pastor se envolveria em funções tão “mundanas” ou “impuras” como algumas que se envolveu? Simples, porque para ele: “não há um único centímetro quadrado, em todos os domínios de nossa existência, sobre os quais Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: É meu!”

Concluindo

Da mesma forma o cristão pode apreciar canções não confessionais-religiosas, desde que seu conteúdo não vá de encontro a revelação bíblica. E não duvide, há muitas canções assim, por exemplo, Desafinado de Tom Jobim, Chega de Saudades de Vinicius de Moraes, Paciência de Lenine, Eu só quero um xodó de Luiz Gonzaga, Pra você guardei o meu amor de Nando Reis. Não obstante não devemos sair consumindo todo tipo de produto gospel pelo simples fato de ser gospel, pois muitas delas não são bíblicas e nem belas. Por exemplo, “Sabor de Mel”, “Campeão Vencedor”, “Toque no Altar”, dentre outras. Assim não é dizendo ao cristão o que ele pode ou não que ele não se contaminará, mas ajudando-o na formação de uma mente cristã, uma mente que discirna a realidade na perspectiva da fé cristã e aja a partir dela.
Como cristãos devemos olhar para criação como sendo a criação de Deus, que apesar de estar contaminada pelo pecado, há sinais de graça nela toda. Como disse Jesus “Ele [o Pai] faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos” (Mateus 5.45) e “sendo [os homens] maus, sabeis dar boas coisas aos vossos filhos”( Mateus 7.11). A medicina, a arte, a política e a ciência, por exemplo, não são exclusivos do povo de Deus, mas de toda raça. Desta forma o cristão deve olhar para tudo que for belo, justo e verdadeiro como dons perfeitos e boas dádivas, as quais vem de Deus, o pai das luzes. Assim o cristão é livre não só para apreciar belas canções não religiosas, como também para produzi-las, não apenas para ver o mundo, mas engajar-se nele para glória de Deus e o bem das pessoas.
 Zé Bruno
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