Os atentados na França em quatro princípios bíblicos


Paul Freston e Raphael Freston

Os terríveis atos terroristas na França em janeiro reacenderam vários debates acalorados -- debates, em muitos casos, sem solução fácil. Mas, acompanhando-os, nos lembramos de quatro princípios bíblicos que nos ajudam a navegar a complexidade dessas discussões.

Culpa individual
Alguns europeus aproveitaram os atentados para atacar “os imigrantes em geral”. Outros entenderam que os ataques de alguma forma implicavam “os muçulmanos em geral”. Exemplo disso são as palavras do maior proprietário midiático do mundo, Rupert Murdoch, que disse que todos os muçulmanos devem ser responsabilizados pelo ataque, “até que eles reconheçam e destruam o câncer jihadista”. 

Há dois problemas nesse jogo de culpabilização coletiva. Em primeiro lugar, a atribuição de culpa é sempre arbitrária. Quem define a coletividade que deve ser vista como culpada pelos atentados? Já que os três assassinos não eram imigrantes, e, sim, franceses de nascimento, por que não culpar “os franceses em geral”? Ou os europeus ou ocidentais em geral? Se alguém objeta que, pelo fato de não serem brancos, não eram verdadeiros franceses, então por que não culpar "os não brancos em geral” pelos atentados? Se a resposta for que eles não eram quaisquer não brancos, mas muçulmanos, por que não culpar “os religiosos em geral”, ou pelo menos “os monoteístas em geral”? Ou, então (já que “provocaram” os ataques), “os secularistas em geral”? A lista de possíveis coletividades culpadas é longa, exatamente porque as identidades são múltiplas e sobrepostas.

Enfim, a atribuição de culpa coletiva é um jogo sem regras, e quem se arrisca nele corre o perigo de ser o próximo alvo. Além disso, já que as acusações são, via de regra, previsíveis e interesseiras, é melhor que os cristãos abandonem a prática de vez e se aferrem ao grande princípio bíblico da “individualização da culpa”, anunciado exemplarmente pelo profeta Ezequiel (18.20): “O filho não levará a culpa do pai, nem o pai levará a culpa do filho. A justiça do justo lhe será creditada, e a impiedade do ímpio lhe será cobrada”.

Civilidade
A matança na sede do jornal satírico provocou, além do repúdio à violência brutal, uma discussão a respeito de possíveis limites na liberdade de expressão. Há muito tempo, “Charlie Hebdo” critica não apenas o islã, mas também as outras religiões. É um fenômeno bastante francês, encaixando-se na tradição do “laicismo agressivo” (de que falei em recentes artigos nesta coluna), o qual procura eliminar totalmente a religião da vida pública; mas o jornal vai mais longe ainda, ao debochar e tripudiar todas as correntes religiosas. 

Ao mesmo tempo em que se repudia o ataque à publicação, será que “Charlie Hebdo” deveria ser obrigado por lei a moderar as suas críticas às religiões, sobretudo ao islã, e acima de tudo a não retratar o Profeta? Mesmo reconhecendo que os muçulmanos têm uma sensibilidade especial em relação ao fundador de sua religião, inclusive proibições que não encontram paralelos em outras religiões, consideramos que não deve haver leis específicas para o islã. Qualquer restrição teria de contemplar todas as religiões de forma igual; mas é melhor evitar por completo tais restrições. 

Outra questão, porém, é a da civilidade. Aqui, o princípio bíblico que se aplica é o de Paulo (1Co 6.12): “Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém”. É bom que a lei seja o mais flexível possível (dentro dos necessários limites da “incitação ao ódio”); nesse sentido, “tudo me é lícito”. Mas também é bom não transgredir a civilidade e as boas maneiras; é bom, enfim, imitar a Cristo. Nesse sentido, “nem tudo me convém”. (Nas poucas ocasiões em que Cristo fala de uma maneira mais “agressiva”, o alvo são os opressores poderosos. Com certeza, os muçulmanos não constituem os poderosos na França. A grande maioria deles vive nos subúrbios pobres e, como revela recente pesquisa citada em “The Economist”, são apenas 8% da população, e não 31% como imagina o público geral!) O argumento do “nem tudo me convém” foi usado pelo comentarista político britânico Mehdi Hasan, ele próprio muçulmano, num programa televisivo: “Não é contra a lei peidar num elevador cheio de gente. Mas não se faz. E se fizer, e alguém reclamar, não esperamos que todas as outras pessoas peidem em solidariedade!”.

No caso do jornal francês, os protagonistas foram, de um lado, radicais islamitas e, do outro lado, militantes secularistas. Dos 5 milhões de franceses que compraram a primeira edição de “Charlie Hebdo” após o ataque, muitos certamente o fizeram apenas como afirmação da liberdade de expressão. Mas outros o fizeram porque apoiam o laicismo agressivo e de mau gosto do jornal. Peidaram em solidariedade.

E os cristãos? Embora sem participação direta no caso, a resolução lhes interessa muito. Por um lado, o laicismo agressivo dificulta a presença legítima das pessoas religiosas na esfera pública. Mas, por outro, o fundamentalismo religioso, cuja manifestação mais violenta na atualidade é a islâmica, ameaça a liberdade de expressão política e religiosa, e prejudica a imagem das religiões como um todo, sobretudo das religiões monoteístas “abraâmicas”. 

A regra de ouro
O terceiro princípio bíblico que os atentados nos fizeram lembrar é a chamada regra de ouro: “Façam aos outros o que querem que eles lhes façam” (Mt 7.12). Ou, nesse caso, bastaria a versão negativa do princípio (encontrada em muitas religiões) de “não fazer” aos outros o que nos deixa irritados quando outros nos fazem. Os evangélicos no Brasil reclamam (e com razão) quando, vez por outra, um jornal relata crimes comuns (sem ligação com a religião) usando manchetes do tipo: “Evangélico mata duas pessoas”. E os cristãos em geral se ressentem quando os propagandistas do neoateísmo procuram definir o “verdadeiro” cristianismo pela sua forma fundamentalista e insinuam que os cristãos que não leem a Bíblia (especialmente os textos violentos do Antigo Testamento) de forma fundamentalista não creem verdadeiramente na religião que professam. 

Ora, se não gostamos quando não cristãos procuram definir o “verdadeiro” cristianismo, devemos desistir de definir o “verdadeiro” islã para os muçulmanos! Os cristãos (e os neoateus!) que fazem isso, o fazem de uma forma hostil, insinuando: não importa o que os próprios muçulmanos afirmam, porque nós sabemos que “no fundo” querem dominar o mundo pela força e impor as suas leis, já que o verdadeiro islã lhes ensina isso! Parece que alguns cristãos querem “ganhar” do islã, negando aos muçulmanos as cortesias básicas que esperam sempre receber dos outros.

Engolindo camelos
O já citado comentarista Mehdi Hasan disse o seguinte: “Como muçulmano, não vou fingir que as charges que retratam o Profeta de uma maneira muito racializada e sexualizada não me ofendam. Mas o que me ofende muito mais é derramar sangue inocente em nome do islã e do Profeta [...] O ataque [em Paris] foi um ataque contra o islã”. Em outras palavras, o bom nome do Profeta é afetado muito mais pelos terroristas do que pelos cartunistas. 

Nestas palavras de Hasan, vemos uma crítica implícita a setores do mundo muçulmano que, nas palavras de Jesus contra os fariseus, “coam mosquitos e engolem camelos” (Mt 23.24). Ou seja, são cronicamente incapazes de mensurar as coisas, de perceber o que realmente importa. O que pouco importa é visto como vital, e o que é vital é completamente esquecido. Exemplo disso são os protestos violentos (inclusive com queima de igrejas no Níger) contra a edição pós-atentado de “Charlie Hebdo” porque novamente publicou uma representação (embora, desta vez, não agressiva) do Profeta. 

Como cristãos, devemos aplaudir o sentimento de Hasan e desejar que ele seja majoritário no mundo muçulmano. De fato, muitos líderes muçulmanos, no Ocidente e no mundo de maioria muçulmana, têm falado e escrito fortemente contra o terrorismo. E houve participantes muçulmanos nas manifestações pós-atentados em várias capitais europeias. O “silêncio muçulmano” é um mito.

Mas é bom que nós cristãos tenhamos uma dose de humildade e nos lembremos de duas coisas. Primeiro, que o terrorismo islâmico está para o islã assim como as Cruzadas estão para o cristianismo. Embora poucos cristãos queiram defender as Cruzadas hoje, não basta dizer que elas “nada tinham a ver” com o cristianismo. Elas foram um produto do fenômeno histórico que conhecemos como cristianismo. Da mesma forma, o terrorismo islamita não deixa de ser um produto contemporâneo do fenômeno que conhecemos como islã. Mas o terrorismo é mais marginal para o islã contemporâneo do que as Cruzadas foram para o cristianismo medieval. E, em segundo lugar, lembremos que a capacidade de coar mosquitos e engolir camelos se mostra repetidamente (ainda que, geralmente, sem violência) também no cristianismo contemporâneo, inclusive em controvérsias sobre representações cinematográficas de personagens bíblicos.


• Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá. É autor, entre outros, de Nem Monge, Nem Executivo e Religião e Política, sim; Igreja e Estado, não.

• Raphael Freston estuda ciências sociais na Universidade de São Paulo e é membro da diretoria nacional da ABUB (Aliança Bíblica Universitária do Brasil).

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