Por que larguei o álcool

Eu tenho trinta anos, sou cristã evangélica e não bebo. Não ajo assim por ter algum problema com o álcool, embora aprecie a sobriedade. Em uma cultura que nos incentiva a celebrar as coisas boas da vida – como postar no Instagram fotos de um prato bem arrumado ou compartilhar no Facebook um álbum inteiro com fotos das férias –, escolher não beber carrega um estigma de legalismo, uma recusa à diversão. Tal atitude, sobretudo diante de evangélicos mais liberais, pode soar como um ato de retidão sem sentido, de desdém pelo mundo belo que o Senhor criou. 
Por que larguei o álcoolMeu pai era pastor e, durante minha infância, o álcool não era uma questão. Não havia sequer uma gota de bebida em nossa casa e bebíamos apenas suco de uva durante a Santa Ceia. E ninguém que eu conhecia bebia álcool. Eu acreditava que éramos abstêmios, assim como todos os outros cristãos. No entanto, quando tinha 17 anos, descobri um estoque de refrigeradores de vinho em nossa garagem. Fiquei sabendo, então, que meus pais gostavam de beber de vez em quando, mas esconderam isso de mim e de meus irmãos. De repente, tive de reorganizar mentalmente tudo o que eu acreditava a respeito do álcool. Afinal, ele não era inerentemente mau? Não levava apenas a coisas ruins – mau hálito, relacionamentos destruídos e horríveis acidentes de carro?
Depois que soube o que acontecia, meus pais passaram a deixar uma garrafa de vinho no armário da cozinha e um pouco de rum de coco em cima da geladeira. Eu comecei, então, a ver que beber ocasionalmente era uma maneira adulta de se divertir. Isso se tornou um sinal da maior valorização cultural que nossa família estava desenvolvendo, à medida que nos distanciávamos do nosso passado fundamentalista. Quando me tornei maior de idade, minha irmã me comprou minha primeira bebida alcoólica. Foi a quantidade perfeita de rebeldia e doçura.
Desde então, eu estive presente em diferentes círculos cristãos, desde igrejas pentecostais conservadoras, onde ninguém chega perto de uma garrafa, a seminários batistas cujos alunos e professores apreciam vinho e cervejas artesanais. Durante todo esse tempo, tenho bebido ocasionalmente, socialmente, como se diz. E sinto-me livre para viver minha vida de uma maneira que glorifique a Deus. Desfrutei da camaradagem que os bares podem criar, da solidariedade de bons jovens cristãos apreciando uma cerveja juntos e da maneira como sentíamos que estávamos começando a nos encaixar e a relaxar.
Imprevisível e perigoso
Nos últimos anos, porém, minhas crenças mudaram. Nosso primeiro choque foi quando nos mudamos, por motivos ministeriais, para o nosso apartamento de baixa renda em uma cidade do interior. Certa vez, desci para pegar a correspondência e encontrei um homem desmaiado nas escadas, às onze da manhã. Alguns vizinhos gritam e brigam quando estão bêbados e outros, que sofrem de psicoses ligadas à ingestão de álcool, que os levam a atitudes inteiramente impensadas. Eles quebram janelas, têm garrafas de vodca vazias na sala de estar e, vez por outra, ficamos sabendo alguém morreu por causa do álcool – seja por cirrose, asfixia no próprio vômito ou suicídio.
Então, de repente, o álcool deixou de ser divertido. Ao contrário, eu passei a vê-lo como uma substância que muda meus amigos e vizinhos, tornando-os imprevisíveis e perigosos. Depois de um ano vivendo entre eles, fui, gradativamente, parando de beber. Por fim, acabei percebendo que poderia abdicar do álcool completamente, e que isso poderia ser uma disciplina espiritual para mim – uma forma de orar e me identificar com meus próximos que não conseguiam parar de beber.
O apóstolo Paulo escreve, em Romanos 14.17, que o Reino de Deus “não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo”, o que significa que recusar qualquer bem criado por Deus não garante retidão diante dele – e, em contrapartida, que desfrutar de algo por ele criado não impede isso. Por mais surpreendente que fosse minha nova abstenção, ela começou a parecer uma maneira concreta de identificação com as vítimas do álcool que eu via diariamente. Como pude ver, eu estava percorrendo o caminho desgastado dos cristãos de séculos anteriores, que também queriam se colocar contra os efeitos nocivos e sistêmicos do álcool. Movimentos de moderação, na maior parte das vezes fundados e organizados por mulheres, foram uma reação direta aos males sociais do álcool entre os séculos 19 e 20. Naquela altura da história americana, as mulheres tinham pouco ou nenhum direito no que diz respeito à propriedade e posse. Os homens da família podiam gastar legalmente com bebidas os seus salários e os de suas esposas também. Então, as mulheres, especialmente as cristãs, começaram a se organizar e a fazer pressão contra o álcool, começando dentro de suas casas e se movendo, gradualmente, para a esfera política. A moderação passou a ser associada a uma série de outros direitos femininos, como o de votar e concorrer a posições políticas.
O movimento da moderação veio da crença de que o álcool afetava desproporcionalmente os pobres e marginalizados, geralmente em áreas urbanas. Muitas vezes, as mulheres envolvidas nesses movimentos se reuniam em bares cantando hinos, se prostrando no chão e orando, implorando para que os donos fechassem as portas de seus estabelecimentos.
Outras igrejas, também, alimentadas pelos avivamentos espirituais dos séculos 18 e 19, passaram a denunciar o consumo de álcool. Pastores protestantes, como Lyman Beecher e, depois, Billy Sunday, enfatizavam a questão da salvação pessoal e da devoção moral na preparação para a segunda vinda de Cristo. Quase todas as grandes denominações protestantes começaram a combater o álcool na mesma escala em que denunciavam todos os outros males da época: escravidão, prostituição e jogos de azar. Em 1820, denominações como a Metodista, a Batista e a Congregacional passaram a exigir a abstinência para a adesão de membros.
Celebração equivocada
Se a moderação tem um contexto histórico baseado na justiça social, por que muitos crentes de hoje em dia se sentem tão constrangidos quando pedem apenas água mineral no almoço? Parece que a Igreja – e a cultura secular – oscilou de volta na questão do álcool. Jovens e mulheres, em particular, parecem estar aceitando a bebida como sinal de libertação, bem como uma forma de lidar com as crescentes pressões do trabalho e de casa. Estudos recentes sobre o assunto apontam para uma mudança cultural mais ampla, onde todas as pessoas são encorajadas a celebrar, ao invés de esconder, o fato de beberem. Para muitos cristãos, tal postura inclui o afastamento daquilo que é considerado como um fundamentalismo do nosso passado.
E vejo isso em minha própria vida. Meus colegas, a maioria deles com suas carreiras em ascensão, fazem referências constantes ao álcool, especialmente em suas mídias sociais. Eles postam fotos de drinques e celebrações em torno de garrafas vazias e taças cheias e comemoram seus aniversários em barzinhos. Há igrejas que organizam reuniões nas quais as pessoas conversam sobre questões bíblicas enquanto desfrutam de uma cerveja de marca. Talvez, eles não tenham nenhum amigo ou parente que lute contra esse vício. Mas a realidade é que, provavelmente, conhecem alguém que sofre com o alcoolismo.
As estatísticas mundiais apontam dados alarmantes ligados ao consumo de álcool. O alcoolismo já é a terceira doença que mais mata no mundo, superando a obesidade, o tabagismo e a Aids. Segundo a Organização Mundial de Saúde, já são 2,5 milhões de vítimas fatais por ano. Só para se ter uma ideia, 90% das internações em hospitais psiquiátricos por dependência de drogas acontecem devido ao álcool, que faz tão mal para o corpo quanto a cocaína e o crack. Cerca de 80 por cento das pessoas em idade universitária bebem – e metade delas bebe regularmente. Há outros problemas menos visíveis. Riscos para a saúde decorrentes do abuso com a bebida – cirrose e outras doenças hepáticas, por exemplo – afetam desproporcionalmente os mais pobres e os mais jovens. O álcool é um fator determinante em casos de agressões e de violência sexual relatados por pessoas entre 18 e 24 anos e está na linha de frente das causas principais de acidentes de trânsito.
O álcool passou a ser parte integral dos problemas que testemunho todos os dias no ministério: violência, problemas de saúde mental, doenças e morte prematura. Eu percebi como isso se tornou uma forma de opressão em comunidades marginalizadas. Ao mesmo tempo, vi como é fácil, para mim, me autoproclamar uma cristã liberal e beber livremente com moderação, celebrando a vida. Só que essa realidade não é a mesma de muitos irmãos, amigos e vizinhos. “Não se embriaguem com o vinho”, diz a Palavra. Para muitos, por causa de alguma doença, é impossível beber e não ficar bêbado. O que, então, um cristão deve fazer?
“Livres de fato”
Hoje em dia, Romanos 14 é muitas vezes apontado como um exemplo de cautela no exercício da liberdade cristã. Todas as coisas são sancionadas por Deus, mas se as suas escolhas fizerem alguém pecar, é seu dever colocar essas pessoas em primeiro lugar. Chamamos isso de amor ao próximo. Paulo adverte aos cristãos a não julgarem uns aos outros – tanto aqueles que parecem ser permissivos demais quanto os que preferem uma abstenção radical, por decisão própria ou noção de sua vulnerabilidade. 
Os cristãos também tendem a aplicar o texto de I Coríntios 8, onde Paulo escreve a respeito do consumo de carnes oferecidas a ídolos e ao álcool. Sempre pragmático, o apóstolo escreve: “Ora, a comida não nos faz agradáveis a Deus, porque, se comemos, nada temos de mais; e, se não comemos, nada nos falta”. Ele, em seguida, reconhece que alguns cristãos não comem carnes oferecidas a ídolos, e que, para outros, isso pode se revelar um obstáculo na experiência da obra transformadora de Cristo. Nesses casos, Paulo deixa claro: “Por isso, se a comida escandalizar a meu irmão, nunca mais comerei carne, para que meu irmão não se escandalize”.
 Talvez, nenhuma substância se encaixe na definição de causar escândalo quanto o álcool. A nossa compreensão contemporânea do abuso do álcool deveria crescer em igual proporção à nossa compreensão sobre a liberdade cristã. Mas, talvez, haja outra maneira de interpretar essa passagem. Na primeira carta aos coríntios, Paulo supõe que seus destinatários estão vivendo com pessoas de diferentes origens, onde cristãos e pagãos interagem na sociedade. Assim, o apóstolo está dizendo às igrejas primitivas como elas devem se comportar em um mundo onde as pessoas são bastante diferentes – e, como sempre, pede que elas ajam sempre em amor, colocando as necessidades do próximo antes das suas.
O problema surge quando o nosso próximo são pessoas como nós. As igrejas, no contexto ocidental e consumista, costumam atender a públicos e teologias específicos. As mídias sociais permitem que escolhamos amigos que se parecem conosco. Somos atraídos a pessoas semelhantes a nós, que pensam como nós e têm os mesmos hábitos que praticamos – e, quando se trata de cristãos desfrutando de bebidas alcoólicas, isso pode ser um pecado real.
Eu não parei de beber porque queria fugir dos males do mundo; parei de beber como uma forma de me envolver com eles. O abuso de substâncias e os vícios afetam todas as áreas da nossa sociedade. Eles impedem que as pessoas se relacionem com Deus e umas com as outras. Será que fomos tão longe com nossa liberdade cristã a ponto de perdermos de vista os verdadeiros propósitos de cuidarmos dos necessitados, o que inclui aqueles que lutam contra o alcoolismo? A liberdade cristã é um importante conceito teológico – ela nos ajuda a lembrar e a celebrar a graça e o amor de um Deus extremamente bondoso. Porém, é apenas em um contexto de relacionamentos diversos que a liberdade faz sentido. Se incluirmos em nossas relações pessoas de diferentes etnias, contextos socioeconômicos e culturais, nós, naturalmente, consideraremos como nossas ações afetam aqueles que são diferentes de nós.
Minhas roupas, a comida que como e a maneira como falo – e, claro, aquilo que bebo – foram alteradas de modo a alinhar a minha liberdade em Cristo com a realidade do contexto em que me encontro. Não estou dizendo que todos devem ser abstêmios. Mas estou pedindo que considerem a moderação como uma válida e atenciosa opção, como tem sido para muitos cristãos ao longo dos séculos. Somos livres para não beber por causa de nossos relacionamentos com aqueles que sofrem nessa área. Somos livres, de fato, quando o amor norteia as nossas ações.
D.L. Mayfield é escritora e participa do ministério social Inner Change
First published in Christianity Today, copyright © 2014. Used by permission, Christianity Today International
 (Tradução: Julia Ramalho)

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