MUNDANOS, graças a Deus


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Certa vez, em um congresso de jovens, em um estudo sobre afetividade, um rapaz encaminhou a seguinte pergunta: “O que o senhor acha de se namorar uma moça do mundo?” A minha resposta foi: “Parabéns por sua normalidade. Estaria preocupado se você estivesse namorando uma ET”. Em nossas igrejas, artistas dão testemunho, dizendo que deixaram de cantar ou tocar “no mundo”. Talvez já tenham contratos para atuar em Marte ou Vênus, ou para fazer uma exibição para as potestades angélicas... 

O mundo 
Um problema de tradução de vários termos do grego para um só vocábulo em português tem concorrido para distorções teológicas de trágicas implicações. 

Pode parecer contraditório que Jesus Cristo tenha dito que o seu reino não é deste mundo (Jo 18.36), enquanto afirma que Deus amou o mundo ao ponto de por ele sacrificar o seu filho. E, ainda, nos ensina em sua oração: “Assim como Tu me enviaste ao mundo, também Eu os enviei ao mundo” (Jo 17.18). O apóstolo do amor, João, também parece contraditório: “Não ameis o mundo, nem as coisas do mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele” ( 1 Jo 2.15). Estaria João pedindo que fôssemos contrários a Deus, não amando o mundo, que Ele amou? 

Deus criou o mundo, o universo (kosmos), e ama a sua criação. No universo da criação Ele incluiu o nosso mundo particular, a terra (geo), e também o ama. A terra, a natureza e as criaturas (oikumene) caíram, mas Deus não as desprezou. Ele havia planejado um estado de coisas perfeito, diferente do atual (aion), com o qual devemos nos inconformar, esperando um mundo novo (aiones), quando, por fim, viveremos em um mundo pleno (aionios). 

Assim, a questão não é espacial — a rejeição do planeta, da vida, da história, da sociedade, das pessoas, do Estado, do corpo —, mas ontológica e moral — as formas de pensar, de agir, de organizar, que são contrárias ao projeto de Deus. 

Em meu livro Cristianismo e Política, escrevi: “Quando amamos os homens estamos rejeitando ‘O mundo’ (que não ama, mas odeia); quando lutamos pela justiça, pela paz e pela liberdade no mundo (valores do Reino) estamos rejeitando ‘o mundo’ (que é injusto, conflituoso e escravizador); quando penetramos no mundo rejeitamos ‘o mundo’ (que é egoísta e alienante). O que assumimos é mais do que vida e ministério em um tempo dado (chronos), mas no tempo marcado pela Providência, designado por Deus para nossa missão (kairós). O que João está rejeitando? ‘... a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida...’, ou seja, o pecado. A isso ele chama, metaforicamente, de ‘Mundo’. A isso rejeitamos; aos homens amamos.” 

Mundanidade 
Deus entregou às criaturas humanas um mandato cultural, de gerenciar o mundo, dando continuação à obra da criação, segundo o seu projeto original. Deus exerce a sua providência sobre o mundo, nele estabelece alianças, a ele se revela e nele encarna. Jesus Cristo foi completamente humano em tudo, menos no pecado, e um ser cultural, completamente integrado à vida social do seu tempo e lugar, assumindo a sua cultura. Por fim, Ele nos enviou ao mundo. 

Foi o evangelista Charles Finney quem afirmou que a tarefa do cristão é transformar o mundo. E não se transforma o mundo sem dele participar. É uma heresia dos desobedientes, dos medrosos, dos preconceituosos e dos acomodados a atitudes de isolamento dentro das quatro paredes da igreja, o separatismo, a alienação de um falso “triângulo da felicidade”: “trabalho—lar— igreja”, sem o exercício responsável de cidadania, como “sal” e “luz”. 

É a falsa “teologia” do “crente não se mete nisso” ou “isso não é lugar para crente”. Ou essa gente não leu o evangelho ou não aprendeu nada com a vida de Jesus. Assim, a desobediência leva à não-influência na vida pública: cidadania, cultura. Assim, nos ausentamos dos esportes, das ciências, da literatura, das artes, das manifestações folclóricas. Assim, não vivemos, mas somos apenas pré-cadáveres. 

No Brasil, uma ênfase particular contra tal “mundo” se refere à nossa cultura, por suas raízes ibero-católicas, ameríndias ou africanas. Por esse raciocínio, desmundanizar-se seria desbrasileirar-se. 

Mundanos 
Eis o âmago da questão: 
1. Somos todos seres humanos, e não anjos; seres sociais, e não eremitas; terráqueos, e não marcianos; e vivemos culturalmente: língua, roupa, culinária, arte, direito, religião, costumes, valores, estilos, etc. O mundo é pluricultural, e todos os cristãos vivem em uma cultura, como Jesus viveu na dele; 

2. Todos as culturas, por serem produzidas por comunidades de pessoas, são ambíguas, têm aspectos positivos e negativos, refletem tanto a imagem de Deus quanto o pecado. As culturas (para a antropologia) não são piores ou melhores, são diferentes. Cada uma tem virtudes e fraquezas. As culturas não podem ser nem sacralizadas (tidas como absolutas, imutáveis e acima de tudo), nem demonizadas (rejeitadas em sua totalidade, como perversas); 

3. A cultura judaica não era sagrada, nem normativa, nem pode servir, automaticamente e em um salto histórico, como paradigma para hoje. Ela foi, em sua ambigüidade, um espaço para a revelação e, por isso, tem muito que nos ensinar. Mas seria um absurdo o cristão desbrasileirar-se para judaizar-se; 

4. A igreja primitiva também tem sido mitificada. Apesar de sua proximidade temporal com Jesus, também tinha os seus problemas. Não se pode reproduzi-la 2 mil anos depois, o que seria negar a história e a atuação do Espírito Santo nestes vinte séculos; 

5. A atitude sectária isolacionista de alguns cristãos contradiz a destinação dos seres humanos na ordem da criação (mandato cultural) e o “ide” para ser “sal” e “luz” no mundo — e não fora dele. Esses cristãos seguem o modelo dos essênios, e não o exemplo de Jesus; 

6. É compreensível a valorização das culturas em que o cristianismo (particularmente o cristianismo reformado) teve uma maior influência. Mas não devemos mitificá-las, esquecidos do seu lado pecaminoso, dos seus exageros e esquisitices, tantas vezes erroneamente identificados como reino de Deus. Não estamos na Alemanha do século XVI, ou na Inglaterra do século XIX, nem devemos querer ser o sul dos Estados Unidos, a Irlanda do Norte ou a África do Sul do século XX. Enveredar por esse caminho não torna ninguém mais cristão, apenas “americanalhado”... 

Pela providência de Deus, somos brasileiros e temos a nossa nacionalidade. Pela graça de Deus, temos a nossa cultura e a nossa maneira de ser. Somente com o nosso amor à brasilidade poderemos questionar e propor mudanças, à luz da Palavra, e não de preconceitos importados de outras culturas. 

A mundanidade é um fato. O mundanismo (versus santidade) não é uma questão de exterioridade, mas do nosso interior (obra da carne versus fruto do Espírito). Testemunho não é dado em riste, hipocrisia, anacronismo ou estrangeirismo, mas em vida de amor. 

Robinson Cavalcanti é bispo da Diocese Anglicana do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política – teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo – desafios a uma fé engajada.
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