Ricardo Gondim - A Dor que mais dói

Resultado de imagem para ricardo gondimAlgumas dores são localizadas; conseguimos dizer exatamente onde machucam. Outras se disseminam e tudo fica sensível. Explico melhor. Algumas feridas só magoam em determinado lugar: queimadura, espinho e contusão. A gente consegue dizer até o tipo de desconforto que elas produzem; se são pontudas, ardentes, ocasionais.

Certos sofrimentos se alastram. E eles tomam conta de todo o nosso ser.  Se confundem, inclusive com a nossa existência – e de tal maneira que perdemos até a memória de como começaram. Mesmo sem tocar no ponto sensível, sentimos, como onda, a dor se espalhar. A pele se arrepia com o que é desagradável. Assim como existem infecções sistêmicas, há dores sistêmicas.
As feridas da alma podem virar septicemias.

Terapeutas dizem que todos carregamos feridas narcísicas; que são nevralgias existências, ou pontos ultra sensíveis da nossa memória afetiva. As feridas narcísicas começam como mágoa, que alguém produziu em nossa infância e adolescência. Algum evento fica remoendo dentro da gente desde o período em que firmamos nossa identidade sexual, existencial e emocional. Críticas ácidas, zombarias, escárnios, autoritarismos e preconceitos causam essas ulcerações na alma – e que geralmente precisam de décadas para cicatrizar.

Zinedine Zidane, o lendário jogador do futebol francês, perdeu compostura e distinção quando um adversário falou impropérios sobre sua mãe em um jogo. Ele talvez suportasse qualquer outro xingamento, mas aquela frase cutucou a ferida narcísica. Zidane, conhecido por sua calma, reagiu com violência.

Daí o cuidado com juízos. Podemos destruir uma pessoa por inteiro. Qualquer juízo precipitado pode arrasar com alguém. Tempestividade é traço de quem gosta de passar rótulos. Quanto menos alguém conhece menos afobado ele, ou ela, deve passar qualquer sentença. Caso tivéssemos acesso aos dilemas mais íntimos, ou à disfuncionalidade familiar mais antiga, mais compreensivos e menos prontos deveríamos ser em condenar.

Davi, o rei de Israel, preferiu ser julgado por Deus a passar pelo crivo dos homens. Ele sabia que Deus, antes de sentenciar, desce aos porões subjetivos do espírito. Deus conhece as hesitações da interioridade e trata cada um como um pai amoroso e bom. Os pares do monarca, a partir da superficialidade, só teriam vereditos falsos. Davi deve ter pensado: “Melhor me colocar à mercê de Deus à me enredar com a justiça rasa dos que me rodeiam”.

Cristo ensinou a nunca desprezar a memória sensível dos outros. Quem agride e chama o próximo de “raca” condena a si mesmo ao inferno. (A palavra se traduz do aramaico como “louco” e soa, no original, com o onomatopeico “escarro”).

Constatei ao longo de anos o estrago que a palavra mal dada produz. Cuidei de muita gente destroçada pela inconsequência de comentários irresponsáveis. Hoje tenho certeza que não existem agressões ingênuas. Tudo o que se fala repercute, e os efeitos não são imediatos. As consequências – boas ou arrasadoras – na autoestima de alguém chegam à tona anos depois. Aconselhei mulheres destruídas por comentários levianos que o pai fez. 

Conheci homens que se boicotaram porque alguém alfinetou o nervo exposto da auto estima. (Para destruir uma pessoa muitas vezes basta lembrar malfeitos, vergonhas públicas, deficiências físicas, inadequações familiares).
Ana Carolina canta uma música especial, que fala de um “vendedor de flores que ensina seus filhos a escolher seus amores”. Realmente, o mundo se moveria em outra dimensão se aprendêssemos a tratar o próximo com a delicadeza de quem lida com pétalas de rosa.

Educação, finesse e sensibilidade não veem de berço. São construções que demoram a vida toda. Em uma geração individualista, em que as pessoas mal se preocupam com a felicidade alheia, muitos sofrem quietos. Os dardos inflamados desferidos por gente inconsequente rouba até a vontade de reagir.

As redes sociais se transformaram em arenas. Sem cuidado, covardes, escudados vergonhosamente em perfis falsos, achincalham, mentem e espalham notícias falsas sem se importarem com as consequências. Cada pessoa assassinada pelo zelo dogmático, cada reputação jogada na sarjeta por um dono da verdade e cada história roubada pela sordidez de quem se acha ungido revelam o tanto que ainda precisamos amadurecer em nossa humanidade. A dor que mais dói no outro nunca sabemos.

Todavia, a consciência de que uma fagulha incendeia uma floresta talvez ajude os pueris a colocarem um guarda nos lábios antes de falarem, ou nos dedos, antes de escreverem.

Soli Deo Gloria

Ricardo Gondim

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