Por uma reforma na fé

Talvez, um dos problemas mais graves enfrentados pela Igreja contemporânea seja o da falta de imaginação. Não no sentido de uma fuga da realidade, mas em relação à capacidade de visualizar cenários que vão além das fronteiras que podemos enxergar com nossas limitadíssimas condições humanas – cenários estes que podem vir a se concretizar no mundo real.
Um exemplo, já que estamos às portas das comemorações dos 500 anos da Reforma Protestante. Na época em que aquele movimento eclodiu, havia uma efervescência por parte de alguns segmentos da sociedade em torno do ideal de um mundo letrado, uma sociedade em que a leitura fosse uma atividade acessível a todos. Se pararmos para pensar sobre as estruturas sociais da Europa naquele período e o baixíssimo índice de instrução de seu povo, veremos que, por si só, esse era um ideal utópico.
Pois a Reforma Protestante foi ainda além. Um dos mais importantes legados do movimento que mudou a Igreja no século 16 foi o ideal de que, com o auxílio do Espírito Santo e o emprego de ferramentas adequadas, todos – todos, repita-se – poderiam não apenas ler Escrituras Sagradas mas, também, compreendê-las e aplicá-las à vida prática. Independentemente da imposição de um dogma oficial, qualquer pessoa poderia ter acesso à própria revelação divina. Ora, isso era uma utopia, do ponto de vista humano; um ideal que apontava para uma realidade ainda inexistente e, dentro do horizonte da época, difícil de ser realizada. Foi um ideal que exigiu imaginação. E, como resultado da coragem e ousadia em se imaginar esse cenário, o mundo foi transformado.
É bem verdade que não podemos ser ingênuos. A história da Reforma Protestante tem seus percalços e seus paradoxos. Houve, por exemplo, disparidades entre ideal e prática. Não poucas vezes, ela submeteu o ideal cristão ao espírito dos tempos. Houve, também, relações duvidosas e ilícitas entre igreja e poderes seculares. Mas estamos aqui pensando sobre o legado positivo da Reforma – o mais importante tesouro que ela legou para gerações futuras. Este legado é um princípio em torno do qual a Igreja poderia sempre estar em condições de cumprir sua vocação. O ideal da reforma pressupunha um engajamento submisso, inteligente e crítico com a Bíblia, capaz de discernir a verdade do texto, distinguir entre boas e más interpretações e ouvir a voz de Deus revelada nas Escrituras; um engajamento que seria capaz de levar o leitor a um pensamento cativo a Cristo e a seu Reino, para além de dogmas impostos e das agendas contemporâneas do poder.
O risco de que a Igreja não mantenha seu pensamento cativo a Cristo, e sim, ao “presente século”, é constante. Em todos os períodos da sua história a Igreja esteve sujeita às vicissitudes da cultura, das formas de pensar e agir próprias ao contexto em que estava inserida. Em todos os momentos, houve o perigo de deixar que essas influências externas fossem o fator dominante em suas formas de pensar e agir. Pois hoje, não é diferente. O cativeiro contemporâneo da Igreja se manifesta de diversas formas. Uma delas é na adoção de conceitos e padrões contemporâneos de “sucesso”. Trata-se do antigo problema do poder, um dos primeiros enfrentados pela Igreja, e cujas manifestações adquirem tonalidades diferentes ao longo das eras, envolvendo, até mesmo, os mais piedosos cristãos. Segundo a narrativa de Marcos 10.35-45, Tiago e João suscitaram uma discussão entre os discípulos mais achegados a Jesus ao solicitarem assentos especiais ao lado do Mestre em seu Reino. A imagem ideal de poder e grandeza da época era clara: consubstanciava-se em sentar em um trono, como regente.
Os padrões de referência a respeito do que consiste o poder na Igreja mudaram. Hoje, o que se busca é o maior número possível de seguidores (reais ou virtuais), a opulência das construções sagradas, o volume de arrecadações, a projeção midiática. Nestes tempos tecnológicos, o poder pode ser aferido não pela posse de um cetro, mas pelo conjunto de curtidas em redes sociais, a capacidade de mobilizar massas ou influenciar nas eleições.
A resposta de Jesus a todos os discípulos que participaram daquela discussão é conhecida: “Vocês sabem que aqueles que são considerados governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem poder sobre elas. Não será assim entre vocês. Pelo contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo; e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo de todos. Pois nem mesmo o Filho do homem veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Marcos 10.42-45, na NVI). Mais do que uma lição sobre humildade e serviço, as palavras de Jesus implicam que o Reino de Deus é pautado em uma lógica diferente da que rege as relações sociais e políticas desse mundo. Princípios de vida e padrões de conduta condizentes com o chamado da Igreja devem seguir essa lógica proposta por Jesus. Lembrando do ideal da Reforma, podemos dizer que as igrejas são, ou deveriam ser, comunidades dispostas a encontrar no texto bíblico uma voz que fale mais alto que as infinitas outras vozes que se propõem a ditar nossos caminhos.
Mais uma vez, surge a necessidade de se ter imaginação. Se toda a nossa cultura, nossa sociedade e a realidade que nos cerca podem impor valores distorcidos de forma tão absoluta e sufocante, é preciso uma boa dose de imaginação para conceber cenários alternativos, abrindo portas para outras possibilidades de vida e relacionamento humano – ou seja, outras formas de ser, verdadeiramente, Igreja de Cristo. É necessário ter imaginação para fazer algo diferente do que “todo mundo está fazendo”.
REDUCIONISMO
Para aqueles que amam o legado da Reforma, pode ser relativamente fácil detectar e evitar as concepções equivocadas de poder e sucesso que, tantas vezes, contaminam nossas igrejas e comunidades de fé. Mas existe uma outra área em que protestantes e evangélicos, crentes históricos e neopentecostais parecem estar tropeçando juntos, como em uma brincadeira malfadada de corrida de sacos: é a participação política. O envolvimento dos cristãos com a política é fundamental, embora, de antemão, seja essencial não confundi-la com uma eventual união entre Igreja e Estado. Contudo, se observarmos as formas como as igrejas e os crentes temos nos engajado na política, não podemos deixar de pensar sobre como nos falta imaginação. Desnecessário é relembrar os descaminhos da chamada bancada evangélica e os escândalos de corrupção envolvendo legisladores e governantes ligados a igrejas evangélicas. O que preocupa, mesmo, é a forma como boa parte dos cristãos bem intencionados, das mais variadas matizes, tem promovido um reducionismo no tocante a quais questões devem ocupar a Igreja na esfera pública.
No cenário político atual, quando vozes que se dizem abertamente cristãs se pronunciam, há uma ensurdecedora dominância de alguns temas: a família, o aborto, a homossexualidade (incluindo-se a questão da legalização da união homoafetiva e a adoção de filhos por parte de parceiros gays), o debate entre criacionistas e evolucionistas e alguns outros. Não vem ao caso definir qual seria o posicionamento cristão correto com relação a tais temas; o que nos toca é questionar porque eles parecem ser tão dominantes na discussão sobre uma presença cristã na esfera pública. Por que assuntos como esses parecem ser os únicos dignos de algum interesse por parte das igrejas e dos crentes? Pior ainda, por que, progressivamente, esses pontos passam a se tornar marcas maiores de uma identidade cristã?
Em algum momento, a Igreja brasileira passou a entender que pensar a política por um viés cristão é se posicionar com relação a esses assuntos. E só. Mais uma vez, a questão não é qual deveria ser a visão cristã sobre esses assuntos, e nem mesmo se eles devem ocupar algum espaço no debate. A questão é por que falar tanto de aborto e ignorar milhões de crianças de rua em nosso país? Elas também não estariam morrendo de forma violenta? E por que investir tempo e energia no debate sobre se casais gay podem constituir famílias e ignorar milhares de famílias destruídas pela violência doméstica, ou por diversas outras formas de desestruturação social? De que vale lutar pelo ensino do Criacionismo nas escolas e não se preocupar com propostas de cuidado para com a Criação?
Lembramos, mais uma vez, do legado da Reforma Protestante. O que preocupa é a incapacidade de a Igreja articular uma visão sobre sua relevância no mundo que seja realmente desenvolvida a partir de um engajamento humilde e esperançoso com as Escrituras – um engajamento que vá além da simples repetição de uma agenda limitada, de um pacote já previamente preparado, e seja capaz de imaginar possibilidades, e não, simplesmente, reproduzir discursos.
Sem esse trabalho fiel e crítico, a agenda da Igreja fica sujeita a ser controlada e determinada por interesses de grupos de poder, facções ideológicas e tendências da economia e da mídia. Se não pautado por uma reflexão que tome as Escrituras como ponto de partida real de toda reflexão sobre a vida da Igreja no mundo (o legado da Reforma), o engajamento cristão com a política será domesticado e dominado por valores estranhos à fé e por forças escusas. Em outras palavras, a Igreja vai continuar a apenas fazer “o que todo mundo está fazendo”, cega para tantas outras necessidades e possibilidades de pensar e mudar o mundo.
Participação social, política e econômica é fundamental. Mas, a mera ação, sem reflexão, é uma forma de apatia. Na realidade, a mais perigosa forma de apatia, porque vive na ilusão de ser algum tipo de atitude concreta e produtiva. No caso do Brasil, essa atitude tem revelado uma Igreja ávida para se posicionar quanto aos pontos que lhe são queridos, mas completamente inerte em um país assustadoramente tolerante com as mais abjetas formas de violência, injustiça e exclusão social. Se nos voltarmos para a Bíblia com o espírito da Reforma, veremos que as Escrituras têm muito a falar para além do que nos acostumamos a chamar de “assuntos do momento”. De repente, poderemos descobrir, também, que alguns desses temas fora do radar precisam ser abordados com muito mais urgência.
O mais grave de tudo isso é que as questões de interesse da Igreja contemporânea estão se tornando, progressivamente, marcadores que delimitam o que é ser cristão. O perturbador é saber que, sempre que a Igreja (ou qualquer grupo religioso) focaliza tão unilateralmente em questões de comportamento, a fé se confunde com uma moralidade. E a moralidade, rapidamente, desencadeia o moralismo. Moralismo e fé cristã são duas coisas diferentes. A fé cristã é criativa, ousada, submissa às Escrituras e ávida por compreender como pode falar a um mundo em necessidade. Ela é ansiosa por uma transformação do mundo em algo melhor, e por isso está pronta a desafiar todas as agendas que, de uma forma ou de outra, tentam lhe domesticar. Já o moralismo é outra coisa: ele tem todas as respostas prontas e já estabeleceu seu código de conduta “perfeito”. O moralismo é próprio de quem faz “o que todo mundo está fazendo”; ele está preocupado com ordem e estrutura, e não tem imaginação suficiente para se submeter à Palavra de Deus e perguntar: “Existe mais alguma coisa a aprender? Existe algo mais pelo qual valha à pena lutar?” O moralismo é autossuficiente, míope e, por fim, impiedoso.
Se o legado da Reforma Protestante realmente tem algum valor para nós, hoje, precisamos ser cuidadosos para que o moralismo não confunda nossa fé e possamos, realmente, fazer diferença positiva em nossa sociedade.
Rodrigo Franklin de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, mestre em Divindade com doutorado pela Universidade de Cambridge (Reino Unido) e professor de Teologia

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