Ricardo Gondim - O Golpe e sua desgraça

As grandes manobras políticas dão grandes guinadas na história. Em contrapartida geram consequências horrorosas nas pessoas. Sim, pessoas anônimas que nunca conspiraram nas esferas mais altas do poder sofrem desdobramentos, muitas vezes, tenebrosos.
Meu pai foi preso no primeiro dia do golpe, em 1 de abril de 1964. Ele saiu de casa para a Base Aérea e não voltou, por mais de um ano. Mamãe estava grávida. Nossa vida virou de pernas pro ar. Papai foi transferido para o Galeão, no Rio de Janeiro. Dentro do avião, os soldados o vendaram. A viagem aconteceu entre Fortaleza e o Rio de Janeiro sem que os presos soubessem quem estava a bordo. A certa altura do voo, a porta do avião se abriu e volumes foram atirados. Como todos estavam vendados, meu pai nunca soube ao certo se eles lançaram ao mar alguns de seus colegas de farda ou se era apenas uma tortura psicológica.
Sem salário, sem lugar para morar, sem notícias – ele esteve incomunicável por sete meses – mamãe passou por uma gravidez de alto risco. Ela carregava gêmeos. As complicações foram maiores do que podíamos imaginar. A menina morreu dois dias depois do parto. Apenas meu irmão, Sergio, sobreviveu.
Papai foi sumariamente expulso das Forças Armadas. Incluído em um dos Atos Institucionais, o 1 ou o 2, não sei – perdeu a patente. Depois de expulso, foi julgado. Como assim?  Como o expulsaram sem julgamento? Uma excrescência legal. Eu compareci ao tribunal – assisti à tudo. Na madrugada foi achado inocente. Mas nunca lhe reabilitaram. No olho da rua, teve que tentar voltar ao mercado de trabalho. O único emprego que deram a um subversivo: vender lâmpadas infra-vermelhas, que na época se acreditavam capazes de curar muitos males. Quantas vezes meu pai chegou em casa suado. Após bater na porta de casas de massagem, clubes, escolas, não conseguia vender uma única lâmpada. Vivemos meses e meses sustentados pela família da mamãe.
Papai sofreu, minha mãe passou por um purgatório e nós, os filhos, vivemos lampejos do inferno. Por quê? Por uma razão muito simples: acreditou-se na propaganda ianque de que o Brasil seria a próxima Cuba. As transnacionais, que enviavam lucros exorbitantes para suas  matrizes, viam os interesses ameaçados por João Goulart, um presidente que apostava na inclusão social, no estreitamento da brecha que separava os miseráveis dos biliardários.
Espalhou-se uma paranoia generalizada. Gente que mal sabia o que significava rasgar a Constituição e fechar o Congresso, pediu uma intervenção militar. Para salvar (grandes aspas aqui) o Brasil, um regime totalitário se instalou. Políticos lambiam as botas dos generais e os generais acreditaram ser os salvadores da pátria, enquanto se avassalavam aos ditames do grande capital. Havia coronel em tudo quanto era lugar. Delatores se matricularam em faculdades. Poetas e dramaturgos foram censurados; jornais, boicotados. Criou-se uma anomalia política – estapafúrdia – para garantir o poder dos generais: os senadores biônicos. Era um horror.
A corrupção, entretanto, nunca diminuiu. Falava-se em democracia, mas, nos porões das delegacias, jovens eram pendurados em paus-de-arara. Meninas, ainda nos primeiros anos de universidade, eram empaladas com cabo de vassoura. Choque elétrico e palmatória corriam soltos.
Stuart Angel, filho de Zuzu Angel, teve a boca amarrada ao cano de escape de um jipe e arrastado pelo pátio de um quartel do Rio de Janeiro até a morte.
Papai foi espancado e teve os testículos amassados por um porrete só porque um major encontrou uma tesourinha na cela onde ele estava preso. Conheci alguns de seus amigos de cadeia que jamais recuperam a saúde mental. Meu pai lutou com o alcoolismo e morreu com Alzheimer.
Em alguns dias o Brasil lembrará os 50 anos do capítulo mais sinistro de sua história.

Eu estarei entre os que vão chorar.

Soli Deo Gloria

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