Rev. Jairo: Censo sem Incenso e o Contra-senso

Quando se pede algum tipo de opinião a respeito o último censo realizado em nosso país em que, à parte do catolicismo romano, os demais grupos religiosos nacionais são apontados como tendo certo crescimento numérico durante os últimos decênios, o fiel ortodoxo mantém a sua velha leitura também em relação à tamanha conjuntura religiosa pela qual nossa jovem nação brasileira passa Censo sem incenso é contra-senso!
E essa velha leitura coincide com aquela metáfora em que São Paulo se referiu aos primeiros dias da Igreja nas seguintes palavras: “Quando eu era menino”. Foi assim que São Paulo descreveu as primeiras fases da experiência com Deus vivida pela Igreja. Logo, porém, interpõe a tal descrição, a expressão “...quando cheguei a ser grande, deixei as coisas de menino”.
Pensando nisso, é sugestivo relacionar a infância e maturidade da Igreja com a tão entranhada arte da sedução, teimosamente presente entre os homens, arte da qual a retórica, o discurso, a pregação, o sermão, a mensagem falada, a oratória são filhas legítimas. E aqui, não é difícil lembrar de mais uma metáfora:
A estória daquela criança que foi sedutoramente convidada por seu parente para conhecer a nova residência dele. E, depois de um tempo resistindo a idéia de sair de sua casa, a criança começou a perguntar a si mesma se a residência de seu parente não possuiria, ao menos, algo que preenchesse os seus sonhos infantis. Logo, logo, estava a ingênua criança revelando àquele parente, que lhe parecia tão confiável, suas dúvidas mais profundas: será que aquela nova residência não poderia preencher algo daqueles dentre os seus sonhos infantis que diziam respeito ao trabalho seu pai, dono da maior serraria da cidadezinha?
O fato foi que, uma vez de posse das descrições acalouradas da criança, seu parente não furtou-se à arte da sedução, falando de uma forma cada vez mais convincente sobre a existência de caminhões de madeira na garagem de sua nova residência, caminhões cujas rodas, direção, motor, e tudo o mais, eram de madeira. Aquilo era exatamente como sonhara aquela criancinha! Ela via os caminhões enormes que saíam da serraria para pegar madeira na mata, como dizia seu pai, e desejava dirigir, e até possuir, um daqueles. Mas, a realidade daqueles caminhões da serraria parecia ainda muito distante de sua própria realidade, o que lhe fazia reconhecer-se como menino diante de um desafio tão grande. E aqueles caminhões, instrumentos de expansão comercial de seu pai, terminariam por trair a doce imaginação daquela criança que, tantas vezes, imaginara junto com seus coleginhas de escola, de fato existirem caminhões de madeira. Sim! Madeira simbolizava, nem sabia ela, o poder que anelava, um sentimento e uma realidade que, naquele momento de sua vida, não sabia ainda mensurar, ainda que com todas as suas forças desejasse possuir.
Foi então a partir de sua imaginação infantil que seu parente passou a fazer de seus sonhos uma realidade, ainda que desprovida de ser, de existência concreta. Ali estava a vulnerabilidade daquela criança, pois sua cabecinha era o espaço propício a ser preenchido por tudo que ela mesma produzira através de sua fértil imaginação. E qual não foi a desilusão daquela criança quando sendo levada até a casa de seu parente através do discurso encantador que proferira, ou quem sabe, somente ela conseguira ouvir, se deparou naquela residência nova, que não era a dela, com a mais pura realidade. Agora ela se encontrava em uma nova residência tão somente porque dera vazão à força da imaginação quando desprovida de maturidade.
Foi muito fácil! De fato, o parente só teve que, usando tão somente de sua capacidade retórica, levar a criança à concretização de seus ideais infantis e paradisíacos, de seus sonhos desprovidos de realidade, consistência e coerência últimas, conduzindo-a pela estrada dos ideais, pelo caminho dos sonhos carregados por um tipo de substância que logo desaparece quando o mundo real golpeia duramente as infundadas esperanças próprias da infância, as quais foram tão bem manipuladas por seu parente que, quem sabe, apenas quis fazê-la feliz e alimentar os seus sonhos, mas sem tirá-la da infância, negando-lhe assim maturidade.
Não teria isso mesmo acontecido com o catolicismo romano em solo brasileiro, desde os seus primeiros dias nas plagas nacionais? No afã de atender a agenda e demanda expansionistas impostas pela era das grandes navegações, teria realmente ele refletido em nosso meio a maturidade espiritual inaugurada na era do Evangelho, a qual invariavelmente não permite a qualquer que seja a instituição cristã permanecer nas “coisas de menino”? E quanto ao desafio a que a fé apostólica se impôs, desde os primórdios, de não recusar-se a migrar de uma inebriante atmosfera de dons espirituais e milagres para o causticante amadurecimento de seu próprio ethos litúrgico e ascético, o qual tem sido preservado intacto pela Igreja no Oriente Cristão Ortodoxo até os nossos dias?
Muito nos parece que o catolicismo brasileiro ainda não chegou aos primeiros anos daquela maturidade que conquistou o cristianismo medieval sob os Imperadores Bizantinos, a partir de São Constantino, o Grande, convertido à fé ortodoxa em 313 d.C. Tantos anos depois, e novamente, é necessária a exortação de São Paulo a bradar: “Quem vos fascinou, ó insensatos Gálatas?” Parece mesmo que novos judaizantes, retornando erroneamente à lei de Moisés têm conseguido fascinar a muitos que se diziam católicos neste país, seja pela pouca doutrina que receberam ou por não haver um compromisso maior de se fazer com que os católicos conheçam melhor a sua Tradição Apostólica, a sua história e a natureza da Igreja, as quais remeteriam inevitavelmente ao, quem sabe, intencionalmente esquecido Oriente Bizantino.

Quais seriam as razões de tão assustadora omissão? Ao invés de se encontrarem fascinados com a própria residência, quantas criancinhas ainda haverão de se iludir com o trabalho da serraria e com os enormes caminhões que saem do trabalho do pai a fim de produzir ainda mais lucro ao negócio? O esquecimento da dimensão ascética do cristianismo primitivo em meio ao catolicismo brasileiro não é a razão de tantos “caminhões de madeira” produzidos pela imaginação missionária e expansionista do cristianismo ocidental? O esvaziamento da dimensão litúrgica do cristianismo primitivo em meio ao catolicismo brasileiro não seria a ocasião para que “parentes” tão próximos estejam propondo um passeio, com possível permanência, às suas próprias casas, suas “novas residências”, seus “condomínios fechados”, e isso através de um discurso que, em última análise, atende uma demanda de sonhos e imaginação da Cristandade Ocidental, desde Carlos Magno ao chamado “cativeiro babilônico da Igreja”, onde três papas lutavam pela legitimidade da Sé Romana na Europa medieval enfatuada de uma Igreja rica – sob a denúncia de Francisco e tantos outros – com uma liturgia tanto mais estonteante quanto menos ascética? Por que no Brasil de hoje, então, não é mais possível explicar aos fiéis sobre a graça que se conquista no esforço pessoal, e não em frenesis, na adoração coletiva, e não fragmentada e esfacelada por entre as inúmeras propostas permeadas de protesto religioso em nome de “retorno ao Evangelho”? Onde estaria o segredo do Catolicismo Ortodoxo em permanecer indiviso por mais de 2000 mil anos, apesar das inúmeras diferenças étnicas entre os povos orientais?
Sem dúvida, não confundir o Evangelho com um ethos específico ainda parece permanecer a solução, aquela mesma que faz surgir o Evangelho em uma etnia (uma determinada cultura) ao longo de séculos de testemunho ascético e litúrgico da Igreja. Não confundir o Evangelho com um discurso intervencionista, moralista, legalista, pluralista, secularista, hedonista e estrangeirista ainda não deixou de ser uma realidade entre as culturas cristãs ortodoxas. E isso com resultados inegáveis no que diz respeito à preservação da fé apostólica, a qual tem sido conservada intacta, não através de dominação política, de recursos econômicos ou midiáticos, mas tão somente por meio do rito revelado pelo Senhor aos Santos Apóstolos, rito em relação ao qual a Ortodoxia permanece inalterável e inegociavelmente fiel, mantendo a simplicidade da graça mediante a renúncia do cristão às suas vontades e caprichos, sensações e frenesis, reducionismos e modernismos a fim de que a Igreja não desenvolva uma “teologia da corte” ou uma “liturgia de mídia”, mas enrijeça seu teor de sacrifício, sua índole de testemunha do envelhecimento precoce “deste mundo” à medida que renova sua alma no temor do Senhor, enquanto princípio da Sabedoria proveniente da Eternidade.
À semelhança do que ocorreu sob a antiga aliança, abrir mão do rito litúrgico revelado a Moisés desde o topo do Sinai e centrar-se nos sucessivos e desastrosos censos retratados pela Bíblia continua sendo a razão não da ausência de prosperidade, mas da conivência com a idolatria em meio ao povo de Deus. Aliás, nunca a prosperidade fez frutificar tanto a árvore, cuja folhagem não murcharia, como nos dias de Salomão em que a idolatria foi sorrateiramente encontrando seu lugar entre os que tinham prazer na lei do Senhor e nela, agora com o templo já erguido, meditavam de dia e de noite. No entanto, “os ímpios não prevalecerão no juízo”, e o dia do juízo ainda haveria de abater a “nação rebelde” que se afastara do rito revelado por Deus, rito cujo principal fim fora o de infundir maturidade nos corações crentes, emprestando ordem à desordem que prevalecesse em meio ao “presente século mal”. De fato, uma nação que rompe com o seu próprio rito litúrgico para envolver-se com discursos, sejam eles políticos, econômicos, ou mesmo, religiosos, é uma nação fadada a não ter a Santíssima Trindade como o seu Deus, ainda que esperneie através das marchas para Jesus, esbraveje através da mídia sob o velho pretexto de um “Brasil para Cristo!”, ou mesmo, recrudesça em movimentos estrategicamente revanchistas.
Semelhante, mas verdadeiramente espiritual, foi o entusiasmo da Igreja em seus primeiros dias, o que não a fez escapar da metáfora de São Paulo ao afirmar: “quando eu era menino”. Era preciso viver seus primeiros momentos, porém, com o horizonte apostólico de que os dons cessariam – inclusive, o do apostolado – a fim de que cedesse lugar ao que haveria de emergir como algo mais definitivo em uma maturidade vindoura quando, finalmente, a união entre a Igreja e o Estado daria cabo das heresias (os separatistas), única ameaça real à Verdade do Evangelho, pois o anonimato, o sacrifício, a perseguição, a espada e até mesmo a morte não podem separar pobres ou ricos, cultos ou analfabetos, reis ou vassalos, do amor de Deus que está em Cristo Jesus, o qual congrega a todos debaixo da Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica.

Sim, meus queridos leitores! Como dizia um destes hinos esquecidos pelos evangélicos brasileiros: “Não é dos fortes a vitória, nem dos que correm melhor, mas dos fiéis e sinceros que seguem junto ao Senhor!”. Por isso, entendemos ser necessário à jovem nação brasileira e imprescindível à sua religião oficial que seja dito às “jovens igrejas” o mesmo que disse São Paulo: “quando cheguei a ser grande, deixei as coisas de menino!”. Mas, como a nação brasileira diria algo deste gênero se cada vez mais se confessa secular em uma imaginada coerência com o princípio da separação entre Igreja e Estado advogado pela democracia ocidental iluminista, sob os auspícios da alta burguesia francesa? E, no atual contexto, como seria ainda possível o catolicismo em solo brasileiro ser assumido como religião oficial a fim de aconselhar às supostas igrejas novas a retornarem ao seu verdadeiro lar ao invés de se entregarem à prodigalidade modernista nascida da ilusão capitalista, do sonho expansionista e da imaginação criativíssima de todo e qualquer grupo que se pretenda verdadeiro e se afaste da ascese genuinamente cristã e daquele rito litúrgico revelado desde os céus? Em poucas palavras, censo sem incenso é contra-senso!

Rev. Jário Carlos S. Jr.
Caruaru,  julho de 2012, Quaresma dos Santos Apóstolos
Festa de São João Maximovitch
Missão Ortodoxa no Agreste Pernambucano:
Comunidade de São João Crisóstomo, Paróquia da Transfiguração
Capela de Saint Michael, Saint John Maximovitch Orthodox Camp
Igreja Ortodoxa Sérvia no Brasil
Bispo Amphilohije Radovic´
Metropolita de Montenegro e Costas
Bispo Provisório da América do Sul e Central

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