A paganização do cristianismo

A despeito da modernidade econômica e tecnológica, os taiwaneses, desde o presidente até o camponês, adoram os que consideram os deuses dos céus e da terra: os espíritos dos mortos (antepassados) e objetos naturais inanimados. “Se os céus, o sol, a lua, as montanhas, os rios e mares beneficiam a raça humana, evidentemente os deuses vivem dentro deles. Por esta razão o ser humano tem a obrigação de prestar-lhes culto, com o objetivo de conservar seu favor” — explica o missionário Douglas Ray Vavrosk, há muitos anos em Taiwan, província ultramarina da China, mas provisoriamente dela separada.

O contato pessoal com os deuses limita-se a pedir favores e consultá-los sobre questões específicas, diretamente ou por meio de um mediador (sacerdote ou sacerdotisa taoísta ou budista). As petições são, em geral, para benefício próprio, como libertação de doença ou desastres, felicidade, riquezas e longevidade. Se os desejos não forem satisfeitos por aquele deus e naquele santuário, o fiel talvez não volte ao mesmo templo nas ocasiões seguintes. Se, ao contrário, as petições de muitos forem atendidas, aquele santuário se tornará famoso e será visitado muitas vezes. Ao Norte de Taiwan, por exemplo, há um templo “poderoso”, especialmente para resolver problemas matrimoniais e ajudar a acertar na loteria.

Os cristãos sempre acreditaram que esse tipo de culto é puro paganismo e que os pagãos devem receber as boas novas de Jesus Cristo. Cantávamos e ainda cantamos hinos missionários como: “Eis os bilhões que, em trevas tão medonhas, jazem perdidos, sem o Salvador”. Ou este: “Avançai, avançai e pregai aos milhões que perecem nas trevas das desilusões”. Colocávamos e ainda colocamos na boca dos que não são cristãos este pedido: “Queremos luz”; e afirmávamos e afirmamos que esse “é o grito das nações pagãs que vêm atravessando o imenso mar”.

Nada de errado nesses cânticos de apelo missionário. O que é preciso verificar com muita humildade é se o paganismo não está entrando devagar no cristianismo.

Há duas evidências que devem ser levadas em conta. Uma é o tipo de oração que fazemos hoje. Cada vez mais oramos por motivos egoístas e consumistas e, não, por virtudes e vitória sobre a tentação. Embora o problema venha desde os tempos apostólicos, todos estamos enxergando a generalização e o agravamento da questão. Pregadores de grandes auditórios e uma boa quantidade de livros estimulam essa prática, enquanto Tiago afirma categoricamente: “Quando [vocês] pedem, não recebem porque pedem mal, pedem coisas para usá-las para os seus próprios prazeres” (Tg 4.3, BLH). Nunca se orou tanto como hoje, inclusive no Brasil. Todavia uma boa parte dessas orações são como as orações dos taiwaneses a seus deuses. Não pedimos a Deus coisas que nos fariam luz do mundo e sal da terra, como amor, paciência, espírito de perdão, sabedoria, humildade, pureza, ousadia, generosidade, mansidão, fé e poder espiritual. Essas são, na verdade, as nossas maiores necessidades. E, além do lucro pessoal, essas virtudes ajudam a trazer o reino de Deus à terra.

A outra e assustadora evidência da paganização do cristianismo é a busca de “santuários poderosos”. Se num centro espírita consigo me comunicar com os mortos e se ali obtenho cura para minha enfermidade, nada me impede de trocar o catolicismo pelo espiritismo. Se em Aparecida consigo uma graça mui desejada e até hoje negada em outros lugares de peregrinação, daqui para frente irei sempre a Aparecida. Se numa igreja carismática, pentecostal ou neopentecostal me livro de meus pesares, por que não deixar a igreja tradicional? Se na Igreja Universal há mais milagres do que na Igreja Deus é Amor, por que não me transferir para lá? E se a Deus é Amor tornar-se mais poderosa que a Universal, o que me impede de voltar para a Igreja de Davi Miranda? A igreja que oferece mais será a minha igreja — argumentam muitos novos e alguns velhos cristãos hoje em dia.

O problema tem chamado a atenção de estudiosos seculares. A pesquisa do sociólogo Alexandre Brasil Fonseca, da USP, por exemplo, mostra que o brasileiro está tratando a religião como objeto de consumo: adere a uma igreja segundo necessidades de momento, podendo mudar de crença de acordo com suas contingências (Época, 21/09/98, p. 15).

Ultimato nº 256

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