Crônica - TERCENDO O ARCO-ÍRIS

Pisava a areia do parque como um deserto. Pegadas marcavam grãos superficialmente. O peso não era suficiente. O vento logo remexia a areia e trazia desenhos em ondas áridas imaginadas.

Divisou uma poça da chuva de um ontem, fingindo ser miragem. Adivinhou um arco-íris rondando a escassez líquida. Segurou-o com a mão esquerda e firmeza, sem embaralhar cores. Rodava pelo parque, segurando o buquê colorido, como a empinar balões.
Houve um tempo. Parou contemplativa. Desfiou cada carreira de cor, a desfazer novelos, a partir das margens. Com todo risco, tecia novo arranjo. Beliscou a ponta da cor violeta e rabiscou uma flor, delicadas pétalas em penugem e maciez de veludo.
Ofertou à senhora regada com gotas de sol na cadeira de rodas, que quase não giravam mais. A senhora olhou a flor e esboçou um sorriso no olhar.
Puxou com força o vermelho, que já batia ritmadamente, e formou um coração. Pousou-o sobre o cão escondido embaixo do banco vazio. Cobria o focinho com patas dianteiras e olhos fechados, traseiros. Tímido, levantou o dorso, latiu entre pausas, acelerando aos poucos o ritmo do próprio corpo, para alcançar a empinada música cardíaca. Por fim, levantou-se com novo batuque ao peito. Lambeu o pé da senhora ao sol.
A menina, então, tocou o anil como ímã, atraindo-o até o alto. E disse: Voa, voa! Das palavras se fizeram um colibri que não voou. Ficou ali batendo asas tão ligeiramente que nem se sabia parado no ar. Depois pousou o delicado bico sobre a flor da senhora da cadeira, que finalmente sorriu com os lábios. E o colibri voou. O cachorro correu atrás dele e latiu com força.
Deslocou a cor laranja. Segurou-a por um tempo como a cavar na imaginação alguma criação. Olhou o menino envolto em jornais e num cobertor velho, na entrada da banca de jornal. Esticava a manhã, fugindo da noite mal dormida ao relento. Imaginou-lhe o estômago a doer. Desenhou com o fio meado entre o vermelho e o amarelo um prato de sopa acompanhado de pão.
Debruçou-se sobre o menino com delicadeza e postou o prato ao seu lado, tocando-lhe de leve o ombro.
O garoto levantou-se assustado, esgueirando-se à parede da banca:
- Êêê, qual é, garota? Me deixa dormir. Tá querendo apanhar?
- Não, estou querendo matar.
- Êêê, cê tá me tirando, é?
- Não, estou só querendo matar e tirar sua fome.
O menino ficou sem graça. Aí viu o prato de sopa. Nem agradeceu. Mais que depressa foi comendo aquele caldo saboroso, quentinho, cheirando a abóbora madura. Arrancava pedaços de pão com o dente.
Depois de acalmar a fome e os olhos, falou com a boca ainda cheia:
- Obrigado aí, hein. Valeu!
O cachorro veio para o seu lado, deitou-se sobre o cobertor. Cheirou o menino. Ele achegou o animal para mais perto de seu corpo. E dividiu o resto de pão e o abraço com o novo amigo. O colibri pousou sobre a árvore mais próxima.
Ela afastou-se e prendeu o azul entre o polegar e o indicador e foi empinando ao alto aquela carreira que se desfez simetricamente em um pentagrama. Salpicou uma a uma as notas de uma canção inventada, pacientemente. A melodia foi ganhando um som suave e pouco audível ainda.
Ao desenhar a última mínima pontuada, soprou sobre aquele conjunto de notas azulares, que ganharam um crescendo de cantiga de roda vibrante, cirandando a praça toda.
A velha da cadeira começou a balançar os pezinhos no ritmo da música, o menino largou o prato vazio e dançava e brincava com o cão, que se levantou rapidinho e corria e pulava atrás do amigo. O colibri dava voos rasantes, como a seguir a melodia.
Pinçou, então, o amarelo e com ele fez um lápis de ouro. Rabiscou a letra de uma canção brilhante:
“Posso imaginar um mundo de cor
Posso lhe convidar a entrar na roda
E girar, girar, girar, girar
Fazer ciranda na praça
Encher o mundo de graça
Fazer a vida ter mais sabor.”
Subiu no trepa-trepa, lançou o poema sobre o pentagrama e viu a canção se fazer poesia com mais força em todo canto na praça.
Cantou. Imaginou um microfone entre os dedos e empolgadamente cantou.
A velha, o menino, o cão e o colibri pararam pra ouvir. Depois do espetáculo, aplaudiram com alegria.
A velha estendeu bem alto, o tanto quanto pôde, a flor violeta e acenou para a menina. Ela inclinou o corpo cerimoniosamente, a agradecer o reconhecimento, e desceu de seu palco.
Mas em sua mão esquerda ainda restava a cor verde. Parou sem saber o que fazer com aquela cor sobrante. Tinha esperança de ainda completar a cena.
Lembrou-se, então, de uma grande vontade: um patins. Há muito não andava em um. Desfiou, assim, o verde com agilidade e desenhou o seu par de patins.
Já ia se sentando para calçá-lo, quando o menino perguntou:
- O que é isso?
- Um patins.
- Mas patins não são verdes.
- Ah, os meus são. Eu gosto de patins e gosto de verde.
E começou a amarrar os cadarços.
- Só tem um par?
Ela olhou pra ele meio desolada. Mas ofereceu:
- Você quer andar nele?
O menino balançou a cabeça que sim e abriu um sorriso.
Ao puxar o cadarço já amarrado, o fio foi encompridando de tal forma que ela viu que poderia criar mais um par. E fez isso.
Os dois calçaram seus patins e saíram deslizando pelas calçadas da praça de mãos dadas, o cão seguindo os dois.
O menino sem querer começou a cantarolar a canção inventada pela menina com sons de azul e significados amarelo-ouro. E a vovó da cadeira de rodas cantarolou também. Foi o suficiente para a menina voltar a cantar.
De repente, começou a chover, chuva de verão, dessas que vem e vão com muita pressa.
Eles correram para ajudar a vovó a chegar debaixo da marquise, mas todos se molharam. Aí, os dois voltaram a andar de patins assim mesmo e, atrás, um amigo latidor.
Quando a chuva passou, no céu surgiu o arco-íris de novo. O colibri chegou perto daquela estrada de cores e saciou a sede numa poça que ficou.
A vovó cheirou, então, pela primeira vez sua flor violeta.
 
Silvana Pinheiro é educadora e escritora. Autora do único livro infantil que a Editora Ultimato já publicou (De Bichos Pequenos e Grandes), e que está esgotado há alguns anos.   
           
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