Política: um ministério esquecido

Ministério e política parecem duas palavras que não aceitam harmonia. Talvez pelo conceito eclesiástico restrito que se tem acerca do que é um ministro da igreja, conceito que se restringe para aqueles que têm a vocação pastoral, ou que estão a maior parte do tempo direcionados a atividades eclesiásticas. Trafego pelos trilhos da doutrina do sacerdócio universal de todos os que fazem parte do povo de Deus; logo quem pertence ao povo de Deus é ministro dele. Servir ministerialmente a Deus não pode abraçar o dualismo inaceitável entre o profano e o sagrado, posição que cria uma separação que chega a ser pecaminosa. A Bíblia não nos deixa uma área de sombras, ela explicita claramente princípios que identificam atividades pecaminosas e outras que são lícitas e agradáveis a Deus. Isto se aplica diretamente ao que desejo tecer sobre ministério cristão e a ação política, fazendo algumas breves considerações.
A maioria das pessoas, em particular os evangélicos históricos, vê a ação política como atividade indigna de um cristão consagrado e comprometido com os valores das Escrituras. Quando um membro de igreja se apresenta como candidato a um cargo público eletivo, é com frequência tido como um “oportunizador”, mais um que visa apenas seus interesses pessoais.
Diametralmente oposta a essa “alergia” política da igreja contemporânea, está a nossa história eclesiástica. A partir da Reforma Protestante, encontramos uma igreja com membros politicamente participativos. Um bom exemplo da política como área ministerial foi o reformador João Calvino. Ele desenvolvia em sua igreja um programa de treinamento de membros para serem bons políticos para a cidade de Genebra, e ao mesmo tempo procurava influenciar a elaboração das leis da cidade com princípios bíblicos. Sua influência produziu leis sobre juros justos, obrigação de banheiros públicos, educação e saúde pública para todos, comércio honesto, etc.
Outro nome registrado na história é o de William Wilberforce. Ele era um cidadão inglês que iniciou na política em 1780, porém só veio a converter-se a fé cristã em 1785 aos 26 anos. Seus esforços e habilidades políticos, marcados pelos princípios cristãos de liberdade e igualdade, deram um grave golpe no mercado de escravos e na escravidão na Inglaterra. Sua ação como político cristão foi inspiração para a produção cinematográfica Jornada pela Liberdade (Amazing Grace).
Entretanto se é preciso apresentar na história um modelo cristão de envolvimento ministerial político eficiente e comprometido com as Escrituras Sagradas, sobressai-se o nome Abraham Kuyper, o qual foi pastor da Igreja Reformada Holandesa, ordenado em 1863. Ele voltou-se para a política após ser incomodado pelas questões sociais e pela forma como a política era tratada em seu país, a Holanda. Para se candidatar ele deixou o pastorado da igreja, mas sem abrir de sua proposta ministerial, e em 1874 chegou ao parlamento holandês. Sua convicção ministerial não mudou quando perdeu suas duas primeiras participações em eleições. A sua visão política ministerial o levou a dizer após a sua segunda derrota eleitoral consecutiva: “Conosco, o que importa não é a influência que temos agora, mas a que teremos daqui a cinquenta anos… Quantos da próxima geração serão seguidores dos nossos princípios?” Após 27 anos de ação ministerial política, Kuyper foi eleito primeiro ministro da Holanda (1901). Como marca maior de conduta podemos destacar:
- A sua busca de evidenciar a soberania de Deus em todas as esferas das ações humanas, inclusive em situações de injustiças e até mesmo em um estado totalitário. Kuyper cria que nada escapava ao controle soberano de Deus.
- A sua percepção da ação divina não excluiu a responsabilidade do estado, da família nem do indivíduo. Por várias vezes ele publicou que em primeiro lugar a responsabilidade se dá perante Deus, depois no contexto de sua área de ação responsável.
- O seu propósito politicamente norteado era ser um instrumento nas mãos de Deus para fazer com que a justiça divina marcasse a sociedade humana. No final da sua vida em 1920, Kuyper afirmou: “O medo da política não é cristão e não é ético”.
Acredito que se a política é área da ação humana que está corrompida e tenta corromper quem dela se aproxima, o instrumento divino para a sua restauração é a igreja. Não a igreja como instituição, mas como povo de Deus que é sal e luz no mundo (Mt 5.13-14). Alguns poderiam alegar que essas minhas afirmações podem parecer ou generalistas demais ou simplistas ao extremo, pois não abordam nem expõem o conteúdo mais profundo da questão. Todavia, afirmo que estamos diante de conceitos falsos acerca do ser cristão, daí a forte tendência evangélica de exclusão da política como uma atividade ministerial agradável aos olhos de Deus. Se nos atermos ao que Jesus queria afirmar no Sermão da Montanha (Mt 5-7), não é difícil perceber que dois fatores estavam envolvidos em ser luz e sal: O fator presença e o fator influência. Não importa quanta escuridão exista, luz sempre será luz, fraca ou forte, nunca se misturará com as trevas, pois sua presença sempre será notada. O mesmo se dá com o sal. Onde ele for colocado, a sua presença fará com que o processo de degeneração seja interrompido, dependendo da quantidade. Quanto à influência, o sabor do sal sempre será notado, seja pela sua presença, seja pela sua ausência.
Considerando a necessidade de também entender a área política como esfera da ação humana que precisa ser marcada pelos valores de justiça e verdade reveladas nas Escrituras, julgo oportuno que servos de Deus, tanto homens quanto mulheres, capacitados para tal ação, se apresentem como instrumentos para implementação dos valores do reino de Deus no mundo político (Rm 6.10-13). Por outro lado, não acredito que o desempenho ministerial cristão na política possa prosperar no solo em que hoje a política atual floresce. Tal solo está poluído, às vezes envenenado, às vezes até minado. Daí acreditar que sem restauração da atual maneira de se fazer política, é muitíssimo improvável haver uma ação política cristã sadia. Sou plenamente convicto e consciente de que o bom desempenho da atuação política cristã precisar ser ética e submissa aos padrões da Bíblia, e isto requer uma verdadeira reforma política, cuja proposta, talvez, até soe como revolução.
Um cristão autêntico que almeje a militância política deve se preparar para possuir os requisitos humanos capacitantes necessários, como qualquer outra profissão requer. É aqui que se insere a ciência política. Entretanto, quando se trata de ministério cristão, o desempenho das ações precisa acoplar outros trilhos e estabelecer outros padrões. É neste locus de ação cristã que faço algumas propostas ao político cristão para servir de plataforma de discussão na busca de resgatar a ação política como ministério de serviço a Deus no mundo.
(1) Fidelidade a Deus e obediência aos princípios da Sua Palavra acima de tudo e de qualquer proposta ou posição partidária.
(2) Construção da base eleitoral na comunidade não cristã através do caráter, honestidade, competência e bom testemunho de quem exerce a ação política.
(3) Composição de cargos nos moldes do caráter cristão, da competência e da confiança.
(4) Prestação de contas e consulta das ações políticas a um comitê missionário.
(5) Estabelecimento pessoal de teto sócio-econômico.
(6) Atuação ampla, dentro e fora do contexto cristão, com visão da abrangência de suas decisões, rejeitando o clientelismo, benefícios e favoritismos eclesiásticos.
(7) Exclusão plena de favorecimentos pessoais e conchavos interesseiros.
(8) Exposição pessoal clara e firme dos princípios cristãos que regem a sua atuação política, permeando os discursos, pareceres e votos.
Reafirmo minha franca oposição aos que defendem a exclusão do povo de Deus da ação política como ministério, e rejeitando equipará-la às demais vocações. Fazê-lo seria agir com conivência pacífica e muda às práticas políticas corruptas, injustas e perversas, tal como procedeu o povo de Israel que deu ouvidos as propostas favoritistas de Abimeleque (Jz 9.1-2). Este não teve escrúpulos nem de poupar a vida de seus irmãos para poder governar (Jz 9.5). Ressalto que ele gozou do apoio político e financeiro dos moradores das cidades de Siquém e Bete-Milo (Jz 9.6). Contra aquela postura política inaceitável do povo de Israel, soa, ainda hoje, a advertência feita por Jotão, filho de Gideão (Juízes 9.8-15):
Uma vez as árvores resolveram procurar um rei para elas. Então disseram à oliveira: “Seja o nosso rei.” E a oliveira respondeu: “Para governar vocês, eu teria de parar de dar o meu azeite, usado para honrar os deuses e os seres humanos.”
—Aí as árvores pediram à figueira: “Venha ser o nosso rei.”
Mas a figueira respondeu: “Para governar vocês, eu teria de parar de dar os meus figos tão doces.”
—Então as árvores disseram à parreira: “Venha ser o nosso rei.”
Mas a parreira respondeu: “Para governar vocês, eu teria de parar de dar o meu vinho, que alegra os deuses e os seres humanos.”
—Aí todas as árvores pediram ao espinheiro: “Venha ser o nosso rei.”
E o espinheiro respondeu: “Se vocês querem mesmo me fazer o seu rei, venham e fiquem debaixo da minha sombra. Se vocês não fizerem isso, sairá fogo do espinheiro e queimará os cedros do Líbano.”.
Quando as “boas árvores” não querem se dispor ao processo de governo, então “a floresta” pede ao espinheiro que reine. Oro ao bom Deus para que desperte a sua igreja no século 21 e levante na ação política homens e mulheres, servos dedicados e consagrados, impedindo que os espinheiros reinem!
A Deus seja a glória.
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Sérgio Paulo Ribeiro Lyra é pastor e coordenador do Consórcio Presbiteriano para Ações Missionárias no Interior. Autor do livro Cidades para a Glória de Deus, publicado pela Visão Mundial. É missiólogo e professor do Seminário Presbiteriano em Recife (PE).

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