Diversidade para a glória de Deus

Amy Grant
Perto do fim dos anos 1970, um novo gênero musical começou a ganhar corpo ao redor do mundo. Era a música cristã contemporânea (MCC), na verdade uma mistura de estilos e ritmos que tinham em comum a temática cristã. Surgida na década anterior, na esteira do Jesus Movement (vertente evangélica da expressão hippie, ou seja, uma contracultura dentro da contracultura), a MCC logo quebrou paradigmas. Ritmos até então considerado profanos pelos crentes, como o rock, o soul, o country e mesmo o funk, um pouco mais tarde, caíram no gosto dos ouvintes e das gravadoras do segmento cristão. Hoje, não só nos Estados Unidos, mas em países como Austrália, Méxixo, Canadá e Brasil, artistas da MCC vendem milhões de álbuns, aparecem nas paradas de sucesso seculares e dão grande visibilidade ao chamado segmento gospel.  

Para compreender o que é a música cristã contemporânea, é preciso olhar somente a música – e não as letras – por meio de um microscópio. Isso porque as letras, quase sempre, carregam elementos explícitos da fé cristã, da Palavra de Deus e do modo de vida evangélico. Verdade é que o trabalho de alguns artistas de proa da MCC, como os americanos Amy Grant e Michael W.Smith, inclui composições extremamente românticas, que tanto poderiam ser cantadas para Jesus como para a pessoa amada. No entanto, a ênfase desse tipo de música é sempre constante nos conteúdos bíblicos e expressões características do povo de Deus. Muito embora a maioria das pessoas a denomine como MCC ou “música de adoração” – ou apenas “adoração” –, ela é, antes de tudo, um subgênero da música popular americana e tem se infiltrado na sociedade desde então. Esta música pop relativamente recente, com suas ramificações quase infinitas, incluindo-se gêneros como soft rock, hard rock, punk rock, alternativo, contemporâneo adulto, rhythm and blues, hip-hop e assim por diante, constitui um modelo constante para a MCC e uns poucos artistas do gênero têm sido inovadores musicais por sua própria capacidade e criatividade.
Michael W.Smith

Praticamente, toda música pop/MCC exibe três características musicais próprias, que não estão presentes nas tradicionais canções protestantes, como hinos e canto coral. Uma delas é a sincopação consistente. Trata-se de uma nota musical emitida em um tempo fraco e continuada em um tempo forte em, virtualmente, cada pauta da música. Frequentemente, o que ocorre é um complexo desses ritmos. Tal sincopação teve sua origem na música africana, sendo levada para os Estados Unidos entre os séculos 17 e 18. Outro traço marcante é a presença de uma constante batida de rock. Isso inclui colocar tonalidade na segunda e quarta batidas de uma medida em um tempo quaternário, o que constitui outra sutil sincopação. Por fim, a MCC, desde seu início, caracterizou-se por um estilo vocal agradável – o chamado back vocal, quase onipresente nos cultos e shows gospel.

As características musicais adicionais igualmente comuns, embora não encontradas em todas as canções, incluem uma boa paleta de acordes, a presença de uma guitarra executando acordes de apoio, um baixo elétrico executado em padrão rítmico complementar ao da bateria e muitos solos instrumentais improvisados e padrões substitutivos. Novamente, é notável que nenhuma dessas características musicais seja encontrada, de modo consistente, na música da igreja tradicional ou sinfônica. A única exceção seria certos tipos de modalidades presentes em obras clássicas britânicas do século 20. Em outras palavras, se um grupo tocasse o clássico Castelo forte e, em seguida, executasse uma canção como Aqui estou para adorar, ainda que com os mesmos músicos e vocalistas, estaria utilizando duas linguagens musicais distintas. A MCC não é meramente um desenvolvimento de estilo da música religiosa do passado, como a mudança nos estilos da arte renascentista para a barroca. Ao invés disso, constitui uma ruptura radical com o passado, sendo passível de comparação com a diferença entre uma catedral e um arranha-céu.

EXPRESSÃO EMOCIONAL
Inúmeros argumentos têm justificado a inclusão, e mesmo o domínio, da MCC nas igrejas de nossos dias. Ela é idêntica, em estilo e instrumentação, à música popular que cada membro ou visitante ouve, constantemente, nas rádios, lojas e anúncios da televisão, bem como nas trilhas sonoras de muitos filmes. Quando a música cristã contemporânea é executada ao vivo, especialmente com os efeitos de luz, cenários, amplificadores potentes e assim por diante, ela é capaz de evocar frenesi semelhante ao de um show de música pop secular.

O estilo também inclui uma rica expressão emocional que pode explicar o domínio alcançado na adoração, fato não observado em outros gêneros, como o jazz e o swing, em suas respectivas décadas de popularidade. Por conseguinte, aquela geração tendeu a voltar-se para compositores clássicos como referência para músicas cerimonialistas, patrióticas e, em especial, de adoração. Em outras palavras, eles dançavam ao som de Glenn Miller, no sábado à noite, para adorar, na manhã seguinte, através da música de coral clássica, da música de tributo de Copland, dos hinos tradicionais e obras de Johan Sebastian Bach, como prelúdios para órgão, porque este tipo de música satisfazia suas necessidades emocionais mais que os estilos populares de sua época.

Eles provaram que o pop era capaz de expressar uma enorme gama de emoções e que podia ser executado sem o acompanhamento de uma orquestra completa. Alguns denominariam tais canções como clássicos menores e a melhor delas poderia mesmo ser comparada com o gênero piano/vocal na música clássica, conhecido como “canção de arte”. Quando, no princípio dos anos 80, foram lançados álbuns de MCC, como o extremamente popular Age to age, de Amy Grant, (que inclui o arranjo de uma fuga de Bach como introdução a uma canção), o subgênero uniu-se à corrente principal, caracterizando uma poderosa força artística. Então, uma serie de artistas foram capazes de falar a toda uma geração de cristãos em sua própria linguagem, em vozes que variavam do berro ao sussurro.

Se a sociedade contemporânea for capaz de permitir a substituição, por completo, de todos os demais estilos musicais pela música pop, seria possível concluir que o mesmo poderia ser feito pelas igrejas. Afinal, se a congregação ouve apenas esse estilo de música durante toda a semana, por que a igreja deveria fornecer algo diferente aos domingos, acrescida, claro, de letras cristãs significativas? No entanto, a verdade é que nem a cultura americana, nem a cultura de outras nações onde o pop ascendeu à posição de música de massa, eliminaram os outros estilos. O competidor mais óbvio é a música das trilhas sonoras dos filmes, um compêndio tanto de elementos clássicos quanto populares. Embora muitas partituras de filmes incluam sons instrumentais, feitos famosos pelo pop, a maioria das trilhas sonoras também inclui segmentos executados por orquestras profissionais. Embora a execução de canções pop durante uma cena de ação seja comum, poucos filmes de sucesso utilizam exclusivamente esta técnica. Por vezes, há uma profundidade de expressão emocional para a qual a música sinfônica é mais apropriada que uma canção pop. Igualmente, as séries de televisão, documentários e até mesmo jogos eletrônicos favorecem essa alternativa.
Johannes Brahms

TALENTO E TRADIÇÃO
A produção de um expoente compositor clássico, normalmente, inclui formas muito variadas, em adição à suas obras mais famosas. Johannes Brahms, por exemplo, escreveu inúmeras canções, porém igualmente compôs diversas peças de coral para a igreja, sem mencionar quatro sinfonias e outras obras extensas. Bach fez o arranjo de centenas de hinos, que podem ser comparados às canções cristãs contemporâneas de nossos dias, bem como escreveu obras para coral, piano e orquestra de variadas extensões, muitas das quais eram executadas nos serviços religiosos. Toda essa diversidade serve para mostrar que nenhum gênero musical – nem mesmo a MCC, considerada por tanta gente hoje como hegemônica no cenário de louvor e adoração – é único na preferência dos ouvintes. E, certamente, o gospel não é o único tipo de música que os crentes ouvem ou até mesmo apreciam entre um culto dominical e outro.

Dessa forma, a liderança da igreja atual detém a responsabilidade de edificar a sua respectiva congregação, apresentando tanto peças curtas quanto mais longas, em estilos variados, de diferentes épocas e para combinações de instrumentos distintas. Não será esta a melhor maneira de “preparar os santos para a obra do ministério, para que o corpo de Cristo seja edificado”, conforme recomenda Efésios 4.12?As canções contemporâneas de adoração cristã são, em geral, belas, emocionantes e inspirativas. Porém, ignorar todos os outros tipos de música devocional é sério um equívoco. Tal prática não apenas privará os jovens fiéis de conhecerem hinos e músicas sacras que consolidaram a fé de seus antepassados como poderá também produzir neles um senso artístico subdesenvolvido. Igualmente, isso dificulta o acesso e a função dos jovens em uma cultura que ainda valoriza o desenvolvimento intelectual e a arte da música em todos os seus estilos. Dessa forma, o crente dos dias de hoje verá a si mesmo como parte de uma estimulante e relativamente nova forma de arte – porém, respeitará o talento genuíno e o êxito, presentes em muitos outros estilos de música, criados para a glória de Deus. (Tradução: Fernando Cristófalo)

Lawrence Mumford é professor de composição no Conservatório de Música da Universidade Biola, em La Mirada, bem como na Faculdade Cristã de Providence, em Pasadena, ambas no estado americano da Califórnia (EUA)

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