ARTIGO: Subserviência, um mal brasileiro

“A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro: de sua vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e polígamo [...] Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a nossa continuidade social” (Gilberto Freyre, em Casa grande e senzala).
Corria o ano de 2006. Ao chegar de avião à cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, procedente do exterior, passo pelo controle de passaporte e pego luz vermelha na alfândega. Meio a contragosto, vou encarar o fiscal que pergunta se tenho algum eletrônico. “Apenas um computador, mas é brasileiro”, respondi. “Se não for muito incômodo, o senhor poderia só mostrá-lo para mim? Sabe como é, eu tenho de pedir...”, justificou o fiscal, para minha surpresa. Foi quando um colega o interrompeu: “Deixe o homem ir embora em paz! Não precisa incomodá-lo.”
Fiquei pasmado. Parece que meu sotaque paulista e o porta-ternos que carregava, a caminho de uma reunião de trabalho, haviam me elevado a uma posição superior, de rico, de coronel, de semideus, sei lá. Raciocínio simples: na cabeça daquele funcionário público, eu não deveria ser revistado, questionado ou incomodado, fora subitamente alçado a uma posição acima da lei.
Era um dos meus primeiros dias de trabalho em um grande grupo editorial do Rio de Janeiro. Após o almoço, com aquele calor, o momento pedia um café. Fui até a máquina do corredor e a mesma estava sendo utilizada por um funcionário da gráfica, vestido com aquele típico traje azul de chão de fábrica. Ele estava pegando vários cafés para levar aos colegas lá de baixo. Quando viu eu me aproximar, parou imediatamente, abriu caminho e liberou a máquina para mim: “Fique à vontade, senhor. Pode pegar seu café”, disse, olhando para baixo. Recusei: “Claro que não, meu amigo, você estava na frente. Eu espero”. Meio sem graça, o operário pegou seu último copo de café e voltou para o calor das máquinas. Meu terno parecia ter me dado o direito a passar na sua frente, a ser mais importante. Ideia simples: meu tempo valia mais; logo, aquele gráfico valia menos do que o executivo.
A praia da Urca fervia. Sol a pique, dezenas de famílias do subúrbio aproveitavam o domingo de verão para levar seus filhos na única praia calma da zona sul carioca. Uma folia divertida, apesar da sujeira que fica para trás – sujeira esta não diferente da deixada pelos bacanas da badalada praia do Leblon. Sentado nas escadas do meu prédio, vi uma vaga de estacionamento aparecer milagrosamente na calçada em frente. Instantes depois, surge uma Brasília e estaciona ali.
O estado de conservação do carro indicava a origem social de seu motorista. Sem que eu perguntasse nada, o sujeito gritou pela janela: “Moço, é rapidinho. Já saio logo, logo, tá?”, avisou, quase pedindo desculpas por ocupar o espaço nobre. Não me contive: “Amigo, o espaço é público. Pode deixar o carro aí o tempo que quiser”. Parece que meu prédio de classe média, na beira da praia, privatizava as vagas no seu entorno, como aliás deve ser o sonho de muita gente. Equação simples: era uma rua de rico. O rapaz tinha um carro de pobre. Logo, não podia estacionar ali.
Subserviência é o que as três histórias têm em comum. Os brasileiros menos favorecidos vêm, há cinco séculos, sendo esmagados pelas classes dominantes – e, infelizmente, muitos parecem ter se acostumado. Ser tratado como um cidadão de segunda categoria passou a ser aceito e até esperado pelas próprias vítimas dessa perversidade. Isso me choca demais. Talvez, por ter vivido em uma sociedade absolutamente igualitária como a sueca. Talvez, por culpa de ser o “paulista viajante internacional”, ou o executivo de terno, ou o morador da Urca. Não sei. O que sei é que temos de quebrar esse ciclo de casa-grande e senzala.
A sociedade brasileira já é tão desigual, e nossa renda já é tão mal distribuída, que pelo menos as leis, as regras sociais e o espaço público têm de ser impostos e favorecer a todos da mesma maneira. Humildade demais pode ser tão ruim quanto orgulho demais. Respeitar nossos próprios direitos é tão importante como observar os alheios; é só assim que os direitos da sociedade subsistirão como um todo. E, como alguém já disse, uma nação é construída como uma catedral, da base até o campanário, e não o contrário. Até porque, aquele que não habita nas catedrais erguidas em seu nome, mas prefere a companhia dos homens – os de terno e os de macacão – prefere assim.
 
Carlo Carrenho
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