As Crônicas de Nárnia são livros cristãos ou não?

Há uma discussão acirrada no meio cristão em relação à chamada “Mania de Nárnia”. A culpa é do aumento da expectativa toda vez que uma adaptação dos livros dessa série é lançada no cinema. Afinal, são filmes de grande apelo e que se utilizam da fama da popular série de ficção infanto-juvenil de autoria de C. S. Lewis: As Crônicas de Narnia.
Lewis era um britânico calvo e solteirão que lidava melhor com livros do que com meninos e meninas. Porém, isso não o impediu de escrever uma coleção de sete romances que foi a série infantil mais vendida do mundo até que um bruxinho chamado Harry Potter entrou em cena. (Estima-se que As Crônicas de Nárnia venderam cerca de 85 milhões de cópias, enquanto os livros de Harry Potter já venderam o dobro disso).
Os cristãos amam as histórias sobre Nárnia e os livros de teologia e apologética cristã escritos por Lewis, como o clássico Cristianismo Puro e Simples. A revista Christianity Today chamou Lewis de o “santo padroeiro” do movimento evangelical, movimento que nunca foi conhecido por atrair um grande número de intelectuais.
Enquanto milhões de cristãos celebram o legado de Lewis, muitos geralmente contradizem sua orientação sobre como devemos tratar a literatura e a arte.
A arte pela arte
Antes de ser escritor ou apologeta, Lewis era professor de literatura na Universidade de Oxford, onde ele e o católico J.R.R. Tolkien [da trilogia "O Senhor dos Anéis"] costumavam beber, fumar charutos e compartilhar suas histórias mais recentes. Posteriormente, Lewis lecionou também em Cambridge.
Para ele, a literatura era mais do que uma série de textos para criticar ou desconstruir as coisas. Pelo contrário, Lewis via a literatura e a mitologia como fontes profundas, que têm muito a nos ensinar sobre o que significa ser humano.
“O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa” foi publicado em 1955. Seis anos mais tarde, a editora Cambridge University Press publicou An Experiment in Criticism [Um Ensaio sobre Crítica], livro de Lewis que, embora breve, mostrou de maneira fascinante como a literatura é lida, compreendida e experimentada por aqueles que a consomem.
Lewis acreditava que a leitura atenta de um romance de qualidade pode gerar “uma experiência tão importante que só poderia ser comparada com o que sentimos na religião, no amor ou no luto”.
Amante da literatura desde a infância até seus últimos dias, Lewis argumentava que ela poderia ser um poder transformador na vida das pessoas. “Toda a sua consciência muda”, escreveu ele. “Os leitores se tornam o que nunca foram antes”.
Nem todo mundo experimenta as glórias da literatura de maneira tão profunda, no entanto. Lewis disse que os que não entendem isso são os “puritanos literários”, que seriam “sérios demais como homens, não podendo ser seriamente receptivos como leitores”.
Existe outro grande grupo de pessoas que não consegue aceitar a literatura ou outras formas de arte pelo que elas são. Essas pessoas procuram usar a arte para seus próprios fins, em vez de deixar que a arte opere suas maravilhas nelas. Parece que alguns pastores e ministros de jovens são parte deste grupo.
“Usar” e “receber”
“Sentamos diante dela [uma obra de arte], para que ela faça algo em nós e não para que possamos fazer algo com ela”, escreveu Lewis. “A primeira exigência que qualquer obra de arte nos faz é a rendição. Olhe. Ouça. Receba. Tire o ‘eu’ do caminho.”
Lewis diz que as pessoas que veem a arte e a literatura dessa maneira já aprenderam a “receber”. “Quando ‘recebemos’, então exercitamos os nossos sentidos, nossa imaginação e vários outros poderes, segundo o padrão estabelecido pelo artista.”
Existe outro grupo maior de pessoas que, ou não sabe como admirar uma obra de arte, ou opta por não fazê-lo. Lewis diz que essas pessoas querem “usar” a arte. “Quando a “usamos”, estamos tratando-a como mero apoio para nossas próprias atividades.”
"não precisamos
de mais pessoas escrevendo
livros cristãos, precisamos
de cristãos escrevendo bons livros"
Há um tipo relativamente novo de “usuário” no meio dos líderes de jovens, como todo mundo que já esteve em um de seus congressos ou leu material dirigido a eles pôde perceber.
Esses “usuários” peneiram montanhas de filmes, CDs e outros produtos da cultura pop, buscando algo que possam usar quando estão ensinando aos jovens na igreja. Os livros e vídeos da série Youth Specialties é um dos exemplos mais populares de recursos que surgiram a partir desse esforço.
Algumas décadas atrás, os ministérios de pregação e ensino de muitas igrejas estavam totalmente distantes da maioria das coisas que estava acontecendo na cultura pop. Por isso, são positivos produtos como vídeos que ensinam como os jovens podem estar mais engajados com a cultura que os cerca. Mas Lewis criticava as pessoas bem-intencionadas – sejam pregadores ou políticos – que procuravam “usar” a arte para seus próprios objetivos. Não importa quão legítimos ou bons pudessem ser esses propósitos, Lewis sentia que a arte sempre sofria no processo.
“‘Usar’ é inferior a ‘receber’”, escreveu Lewis. “Se usada, em vez de recebida, a arte apenas facilita, ilumina, alivia ou atenua a nossa vida, não acrescentando nada a ela.”
O professor Lewis descreveu os que insistiam em “usar” a arte em vez de “recebê-la” desta maneira: “Seremos como um homem que faz uma fogueira, não para ferver a água ou aquecer a sala, mas com a esperança de ver nela as mesmas imagens que viu no dia anterior”.
Usando Nárnia
Hoje em dia, milhares de pastores e professores estão preparando sermões e lições baseadas nos filmes da série Nárnia. Grupos cristãos que foram convocados para ajudar os diretores de marketing estão encorajando igrejas e livrarias cristãs a explorar o poder de Nárnia, para assim alcançar os sem-igreja.
Usar os livros de Nárnia dessa maneira nunca foi o que Lewis tinha em mente quando os escreveu, disse seu enteado Douglas Gresham, em recente entrevista por e-mail. “Jack [apelido de Lewis] nunca quis que “O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa” fosse apresentado ou visto como um “livro cristão”, diz Gresham, que hoje lidera um ministério cristão na Irlanda.
“Jack dizia que não precisamos de mais pessoas escrevendo livros cristãos. O que precisamos é de mais cristãos escrevendo bons livros. Creio que ele estava absolutamente certo. Não precisamos de mais gente fazendo filmes cristãos. O que precisamos é de mais cristãos fazendo bons filmes”.
C. S. Lewis (na foto) acreditava que a arte e a literatura podem alcançar os cantos mais misteriosos da imaginação humana, mas de uma maneira que mesmo os melhores sermões e aulas jamais conseguiriam. Veja o que ele escreveu em Sometimes fairy tales say best what needs to be said [Às vezes, as histórias de fadas dizem melhor o que precisa ser dito,” artigo que apareceu no caderno sobre livros do The New York Times:
“Por que é tão difícil alguém sentir como lhe disseram que deveria sentir-se quando pensa em Deus ou nos sofrimentos de Cristo? Acredito que a principal razão foi que tentaram lhe dizer como deveria ser. A obrigação de sentir pode congelar o próprio sentimento. Mas suponha que, lançando todas estas coisas em um mundo imaginário, libertando-as do aspecto eclesiástico e das lições da Escola Dominical. Isso poderia fazer com que, pela primeira vez, fossem visto por ele com toda a sua potência. Não poderíamos, assim, driblar os dragões vigilantes da ortodoxia? Acredito que sim”.
Para muitas pessoas, seus desejos mais nobres de “usar” os novos filme de Nárnia são tão avassaladores que irão, com prazer, ignorar as preocupações de Lewis. Isso é compreensível, mas Lewis nos convida a abrir-nos para experimentar a arte como ela é, sem buscar um propósito além.
“Ao ler grandes obras de literatura, eu me tornei mil homens, mas continuei sendo eu mesmo”, escreve ele na conclusão de An Experiment in Criticism. “Vejo com inúmeros olhos, mas ainda sou eu quem vê. Aqui, assim como na adoração, no amor, na ação moral e no conhecimento, eu transcendo e nunca sou mais ‘eu mesmo’ do que quando faço isso”.
FONTE: Christianity via Livros e Pessoas | TRADUÇÃO: Jarbas Aragão

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